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sábado, 7 de junho de 2014

João Filho e nosso mais recente grande livro de poesia

Período de vacas gordas na poesia brasileira! Enquanto Emmanuel Santiago lança seu Pavão Bizarro em São Paulo, o poeta João Filho, em Salvador, dá à luz A Dimensão Necessária. Assino embaixo de cada palavra de Érico Nogueira sobre este último, e gostaria de acrescentar algumas outras:

Ao meu primeiro contato com a poesia de João Filho, tive a impressão de estar diante de uma locomotiva irrefreável de imagens – o que é o mesmo que dizer que João tem uma evidente imaginação de poeta; que lhe é natural (de)cifrar o mundo poeticamente.

Mas, como sabemos, um artista é antes as margens do rio do que a torrente que estas comprimem (adaptando um repisado refrão socialistóide). E aí, justamente, está a grandeza desse A Dimensão Necessária com que João Filho acaba de nos presentear: ele é abundância imagética, é experimentação sensorial, é coro de sons e de ritmos – tudo isto cuidadosamente dirigido pela atenção do poeta, que é capaz de nos conduzir pelas mais espiraladas especulações existencial-metafísicas sem perder o fôlego ou o tino.

Há quem se compraza nos mais agudos graus do surrealismo na arte; não é o meu caso. Não consigo ver graça no que se diz “esteticamente estimulante” sem comunicar coisa alguma para além de vagas sensações, mesmo quando não tão vagas. Consigo pensar em alguns casos da recente poesia brasileira (não cito nomes para evitar a fadiga) que são bem assim: é bom, mas não interessa; legal, mas demasiadamente cool. Enquanto isso, João Filho mete o dedo nas mais variadas feridas com a naturalidade de quem não saberia fazer diferente; como um baiano bocejando sob o sol, ao som do Requiem de Mozart.

Talvez seja mesmo essa a qualidade primeira dos poemas de A Dimensão Necessária: sendo produtos de muita labuta artística (e aí cabe trocar uma ideia com o poeta), soam naturais, sem esforço. E não se perdem num lirismo inconsequente: não há verso que não continue a busca de sentido do anterior, ao mesmo tempo sem cair no tom professoral que embarga muita poesia dita conservadora (a minha inclusa, ó inferno!). Não, não, João Filho sabe ao melhor de um Murilo Mendes em diálogo com o melhor Drummond; torno a afirmar que o adjetivo primordial de sua escrita é imagética. Ele, ao dizer, sugere, e suas sugestões, de tão nítidas, desenham na mente do leitor com perfeita eloquência a ideia ou sentimento que despertou o poema. Isso é poesia.

De vez em quando me cai nas mãos um livro do qual sei instantaneamente que o lerei por muito tempo. É o caso de A Dimensão Necessária. O último havia sido O Outro Lado, de Ivan Junqueira, no qual encontrei um estudo exaustivo do tipo de rima que gosto de chamar de “invisível”: ela está lá, mas não salta aos olhos; faz-se sentir, mas quase como uma mensagem subliminar. Esse esquema rímico atendeu perfeitamente às demandas de minha sensibilidade pós-moderna, pós-tradicional, pós-camoniana, como se queira dizer. Ora, e não é que, aparentemente, tocou também os ouvidos desse poeta sangue-puro que é João Filho (embora eu não saiba dizer se via Ivan Junqueira)? A primeira seção do livro de João, intitulada “Luz Alheia”, é um belo catálogo de rimas invejavelmente invisíveis e, como se não bastasse, em metro octossilábico! O octossílabo, de que João Cabral (se não me falha a memória, foi ele) bem disse que “raramente tem oito sílabas”, esse metro que foge à retidão das redondilhas, à previsibilidade dos decassílabos e ao serpentear prolixo dos alexandrinos – é o par perfeito da rima invisível como a concebo ideal e como a encontramos em A Dimensão Necessária. Sem dúvida, é fonte de uma esperançosa sensação de pertença perceber o mundo – especialmente o mundo da poesia – em sintonia com pessoas que admiramos.

Por fim digo apenas, João, valendo-me da felicidade que é poder falar com você diretamente, que seu livro me servirá de alimento por meses sem fim, muito dignamente ao lado de Tolentino, Cabral, Cunha Melo. São recíprocas as palavras que me dirigiu em sua dedicatória: João Filho, poeta, raro diálogo.

Concluo com um de meus poemas favoritos do livro, conquanto um dos mais simples:


Pós-fábula


No seu delírio de durar,
buscou a forma permanente,
que atravessasse os mares findos
e desse em praias do presente.

Não bronze ou aço, algo mais dúctil,
que suportasse as elegias
que as estações ditam ao tempo
na sua má caligrafia.

Envelheceu em tal propósito,
a elaborar um falso eterno:
em cada ruga um desespero,
em cada perda um novo inferno.

E não buscava só memória,
nome num muro ou numa mente,
mas extrair o cerne vivo
do que ontem fora e é presente.

Antes do fim logrou, ó suma!,
a sua bilha de aporia,
que lá chegou, nas praias findas –
bela, intocável e vazia.