segunda-feira, 24 de junho de 2013

Quem - ou o quê - lidera os protestos

A cada dia fico mais seguro de que liberais e libertários tomaram uma decisão sábia ao não integrar a Marcha do Passe Livre, preferindo um protesto a parte. Não fomos massa de manobra do MPL, que conseguiu emplacar a revogação dos vinte centavos; sua única causa, malgrado as juras em contrário da maioria dos participantes.

A verdadeira causa final de uma manifestação popular não é necessariamente o que vai na cabeça da maioria. É a intenção daqueles manifestantes que de fato conseguem atingir seu objetivo. O objetivo da grande marcha pacífica de segunda-feira (17/06) e das que se seguiram foi alcançado: 20 centavos a menos na passagem. O custo extra sairá de algum outro investimento estatal, ou virará aumento de imposto. Espero que você, manifestante engajado, que se encantou com a beleza do povo nas ruas, goste desse resultado, porque foi isso que sua ação produziu. Até o meio da semana passada.

Só que a massa que foi de manobra está fermentando, crescendo sem parar, e agora parece dar o tom. Para muita gente da esquerda, a coisa não vai bem: a "direita" está dominando cada vez mais as manifestações com seus traços distintivos: apartidarismo, roupas brancas, narizes de palhaço, faixas pedindo o fim da corrupção e, acima de tudo, muita, mas muita bandeira nacional.

Devo dizer que, quando a Marcha cruzou o protesto libertário na segunda-feira (17/06), eu achava que havia possibilidade de briga. Nosso lado não deixou de provocar, entoando inclusive refrões contra o passe livre, pedindo - isso sim - livre concorrência e menos Estado. Muitos que passavam tiravam foto. Conversando com manifestantes do MPL e distribuindo panfletos, encontrei interesse, curiosidade, muita discordância inicial e, conforme discutíamos, uma maior abertura a ideias liberais: no final das contas, a maioria é a favor à livre iniciativa de motos, taxis e vans, e de algum tipo de concorrência nos ônibus. Foi uma noite produtiva.

Apesar da paz que reinou no encontro das duas manifestações, houve um ato de agressão. E não, não veio de algum esquerdista querendo implantar à força a ditadura do proletariado. Veio de um "moderado", um apartidário, que se ofendeu sobremaneira ao ver a faixa do Libertários chegar perto dele. Meteu um soco no peito, e quase recebeu de volta uma porrada com um mastro. (Em um protesto subsequente na Paulista um "apartidário" foi bem sucedido: conseguiu finalmente levar uma bandeirada de um petista e já integra o rol dos mártires).

O mais bizarro foi o que aconteceu logo depois. Após os gritos de "sem violência!" - dos quais participei - um manifestante exaltado, vestindo a bandeira nacional, aproveitou uma brecha de silêncio e fez seu manifesto. "Esta é nossa única bandeira!". Aplausos. Após mais alguns gritos - estranhos pelo grau de raiva - ele e seus amigos entoaram um hino nacional, que foi acompanhado por quase todos. (Só a primeira parte, claro; a segunda ninguém decora.)

Eu e mais alguns nos olhamos perplexos. O que era aquilo? Qual o sentido de se exaltar o amor à pátria numa manifestação dessas? Vi um cartaz que dizia apenas "Pelo Brasil", como se amor à pátria fosse proposta política. O que isso comunica? Zero. E zero também é o que constitui o núcleo de todos os moderados e apartidários que foram e continuam indo às ruas.

Os apartidários não são apenas contra partidos políticos; são contra ideias. Não têm absolutamente nada a oferecer além de platitudes que cada um pode interpretar da maneira mais conveniente para sua ideologia, de forma que todos se iludam com um sentimento de união e de estar "lutando por algo maior". No caso, o "algo maior" ainda era ditado pelo MPL, pela "esquerda". Agora, já não é mais ele quem dá as cartas do levante popular.

A única causa que um discurso patriótico e apartidário pode ter é a do combate à corrupção (ato antipatriótico por excelência, embora não antibrasileiro...), que muitos erroneamente veem como o pior mal do Brasil. O discurso anticorrupção serve como bandeira para ser contra o partido da vez - a vez atual, que já dura 10 anos, é o PT. É uma acusação neutra, que não depende de ideologia, feita na esperança de angariar o apoio mais amplo e despolitizado possível, já que, na hora da urna, voto é voto. E é uma bandeira supérflua, posto que todo mundo é contrário à corrupção. Fora essa pseudorreivindicação, sobra o vazio absoluto.

Esse vazio revela o beco sem saída ideológico em que todo mundo que não é francamente de esquerda entrou. Todo eleitor da oposição é um "apartidário" em potencial, posto que não tem nada a mostrar ou argumentar contra uma esquerda que aplica, com consistência, as mesmas teses que ele afirma de corpo mole. Some-se a isso um ódio crescente a um inimigo pessoal, mítico e demonizado, e temos o antipetismo: a cristalização discursiva de um rancor contra uma classe de governantes vista como promovendo o mal em todo o pais e levando-o para o buraco. Como a oposição não pode se dar no plano das ideias, tem que se dar no da vontade: o PT é mau, é corrupto, é populista, é comunista, e por isso tem que ser extirpado.

Digo sem receios: o governo petista tem sido péssimo sim, e de fato levará o país para o buraco se continuar neste rumo; Argentina e Venezuela apontam o caminho. Mas não é por causa de alguma maldade intrínseca não. É porque as ideias da população acerca do funcionamento da sociedade e do mercado são completamente equivocadas, e sempre terão resultados ruins. Essa é uma percepção que só um liberal pode ter; entre o intervencionismo do PT e do PSDB (nenhum deles é socialista), temos as mesmas premissas abraçadas com mais convicção por aquele e menos por este, e só. Pessoas boas, que querem o melhor para  a sociedade, se guiadas por ideias erradas, podem causar males muito maiores do que corruptos inveterados.

Quando se internaliza essa percepção, o diálogo político fica muito mais fácil. Quem discorda não é mais um inimigo malévolo a ser vencido, e nem uma fera irracional a ser evitada. É perfeitamente natural a discussão entre Libertários e membros do Passe Livre. Eu, aliás, partilho da revolta, até admiro sua garra, mas repudio as propostas; e posso dar minhas razões, propondo soluções melhores. Ele fará o mesmo. Com alguém que empunha a bandeira do Brasil e, difusamente irado com os desgovernos estatais, parte para a briga contra todos os partidos (ou seja, contra todas as propostas), o que pode ser dito?

Mas a esquerda também não é boba, e a resposta a essa massa, que foi de manobrada a manobrista, já está correndo as redes sociais: os apartidários seriam parte de um mega-golpe militar ou mesmo "fascista" (e depois reclamam quando a direita usa "comunista" levianamente...). Os militantes de sempre estão "muito preocupados". O fato de muitos quererem passeatas sem partido virou, nesses editoriais, o desejo de abolir todos os partidos e de impor a opressão mais violenta em cima das classes pobres. Já tem até campanha da Avaaz contra o golpe iminente da elite burguesa contra Dilma. Menas, please! Essa narrativa dos apartidários como fascistas é, como todas as narrativas conspiratórias e que veem grandes sentidos unívocos a movimentações coletivas, mais um desejo do que uma avaliação dos fatos. 

O que as manifestações apartidárias revelam é o que todos já sabíamos: o grosso da população brasileira não é de esquerda; é conservadora. E está P da vida. Não tem ideias muito claras sobre como a sociedade deveria se organizar, mas (ou por isso) não quer que chegue alguém tirando o que batalharam para conseguir em prol de alguma causa social. Sim, têm lá sua "mente pequena", não pensam muito nos pobres deste mundo (embora façam diversos atos de caridade pessoal) e não se interessam por política: querem viver, trabalhar, cuidar de sua família e ter seus amigos sem ser atrapalhados e sem atrapalhar ninguém. Preferem o local ao universal, o conhecido ao desconhecido, as mudanças graduais de vida (por meio do trabalho) aos grandes saltos de revolução social. Sentem raiva de um governo que vem dificultando a vida de todos os remediados, seja com impostos, restrições abusivas ou inflação. Sem entender direito as causas, encontram na corrupção e na incompetência explicações fáceis, e em figuras como Joaquim Barbosa - o carrasco dos mensaleiros, embora plenamente de esquerda - seu representante natural.

Esse conservadorismo é mau? Não. É humano; imperfeito, talvez, mas uma base natural e boa para diversas virtudes. Vai dizer que os personagens da Grande Família são fascistas sanguinários que querem oprimir os pobres? E é, inevitavelmente, a mentalidade da maioria da população em todos os lugares e todos os tempos. 

Ao contrário dos manifestantes de esquerda, os apartidários estão protestando por si mesmos, e não em nome de uma suposta classe explorada. O povão pobre, diga-se, está ausente desses protestos da classe média. E a verdade é que a maioria do povão aspira a se tornar um membro da classe média conservadora, apesar de todo o trabalho de intelectuais de esquerda junto às "comunidades". Alçá-lo às condições de vida da pequena burguesia (carro, casa, eletrodomésticos, cinema, viagem) é, por isso, o objetivo do governo federal. Para quem ingressa nela agora, a vida está melhorando, e não sentem os novos custos; para quem   a incorporava há mais tempo, está ficando mais difícil.

A oposição, então, não se dá entre duas classes sociais: reacionários de classe média e povo pobre de esquerda. Dá-se entre duas facções das classes médias (e altas): direita e esquerda; conservadores e progressistas ou socialistas. A condição normal dessa população é o conservadorismo apático e reacionário (que reage, negativamente, a mudanças políticas vindas de fora). Quem quer ir além disso, quem tem desejos de fazer do mundo um lugar melhor (ao contrário dos intelectuais conservadores, considero isso algo positivo), quem pensa no universal e nos grandes problemas sociais, quase sempre desemboca na esquerda estatizante (ou em raros casos - talvez ainda piores - na direita estatizante); essa é a segunda classe do confronto.

Em quase todas as dinâmicas sociais, a tendência das pessoas é identificar-se a um grupo. E essa identificação se dá principalmente pela oposição a outro grupo. Na polarização política atual, vejo um caso desse fenômeno: antipetistas de um lado, antirreaças de outro. O foco é sempre no adversário, e o aprofundamento no que os diferencia se dá por essa via negativa, do querer se diferenciar. Um lado não quer ser o comuna-hippie-sujo, ou o mensaleiro corrupto; e o outro não quer ser "coxinha", termo que melhor capta tudo o que nossa esquerda cultural abomina; e que se refere antes a um jeito de ser do que a um ideário político-econômico. Nenhum dos dois lados pensa em aplicar um golpe seu, mas ambos morrem de medo do golpe do outro.

A dinâmica do Estado cria conflitos e intensifica essa tendência: se quero beneficiar um grupo via Estado, outro terá de ser prejudicado na mesma medida. É um cabo de guerra eterno, e oposto à dinâmica do mercado, em que a vitória de um grupo advém da derrota de outro. No mercado, superar a tendência natural a se agrupar e demonizar o diferente traz enormes benefícios: poder contar com uma rede de cooperação muito maior. Quanto mais troca, menos ignorância e demonização; isso vale tanto numa consideração econômica quanto intelectual. A lógica do mercado é a do ganha-ganha: é só ajudando que se é ajudado, criando valor que se obtém valor.

Isso é uma proposta para que todos pensem apenas em obter valor dos outros? De forma alguma. É o reconhecimento da única forma de organização social que não cria uma contradição interna entre indivíduos ou classes, e que harmoniza interesses individuais e coletivos, engendrando, ademais, um processo educativo que dá às pessoas o gosto de servir aos demais. A relação entre comerciante e cliente é o exato oposto da entre indivíduo e cobrador de impostos.

Por enquanto vivemos entre medos infundados de "revoluções comunistas" e "golpes fascistas", numa cultura com cada vez menos discussão imparcial e mais acusações pessoais de parte a parte. Dilma conseguiu, mediante um discurso perfeitamente convencional e esperado (e em que ela acenou explicitamente às causas da "direita apartidária"), acalmar os ânimos mais radicais, mas os protestos não devem cessar. Só espero não ouvir mais sobre supostas ameaças de golpe, que mais não fazem do que aumentar a chance... de um golpe!

Esquerdistas têm a vantagem dos grandes projetos e aspirações. Conservadores têm suas intuições no lugar certo: o Brasil que se desenha é cada vez menos um lugar propício ao progresso na qualidade de vida. Só os libertários, contudo, têm a solução, e não se confundem com nenhum desses grupos.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Vinte centavos de cu é rola!


Eu ando de ônibus. Se tivesse de ir trabalhar de ônibus todos os dias da semana, gastaria, contando idas e vindas, R$ 33 (a R$ 3,30 a passagem de Jacareí a São José dos Campos, via Satélite); seriam R$ 132 por mês (mais caro, portanto, que a mensalidade de meu plano de saúde); cerca de R$ 1580 anuais. E não são apenas os trabalhadores que arcam com os custos da passagem; muitas empresas dividem tal despesa com seus funcionários por meio do vale-transporte. Então não é por causa do último reajuste: a conta vem pesando no bolso faz tempo. Lembro-me do tempo em que andar de ônibus era tão barato quanto tomar um refri de 290 ml na padoca. Eu lembro. Sempre andei de ônibus. Pior do que o custo salgado do serviço, porém, são as péssimas condições nas quais ele é oferecido. Quando pego o ônibus de manhã para o trabalho sei que, invariavelmente, ficará lotado. Não falha uma única vez.

A revolta é justa e o buraco é mais embaixo. Por trás da tarifa abusiva do transporte público está um problema mais amplo, que é a relação perniciosa que as empresas prestadoras de serviço mantêm com os governos de todas as esferas — federal, estaduais e municipais —, principalmente naquelas áreas em que está garantido o monopólio sobre o mercado.

Em minha cidade, Jacareí, existe a lenda de que a empresa de ônibus que atua no município presenteia os vereadores com automóveis para que eles legislem a favor dos interesses dela. Não sei se é verdade, mas todos sabemos como funciona esse jogo sujo: as empresas investem pesado nas campanhas dos candidatos, a maior parte na forma de dinheiro não contabilizado (o chamado “caixa 2”). Depois o sujeito é eleito e está com o rabo preso. Eis que vêm os aumentos abusivos (quando considerados a médio e a longo prazo), os cortes de gasto e a depreciação progressiva da qualidade dos serviços prestados. Com exceção do povo, todos saem ganhando, uma vez que parte desse dinheiro a mais que as empresas levam sobre o usuário acaba nos cofres da campanha dos políticos, quando não em seus bolsos. Estou falando de propina, é claro.

Tanto faz quem esteja no poder: sai PSDB, entra PT, o esquema já está armado; o sistema, funcionando. É prática corrente no país inteiro e envolve o transporte público, a merenda escolar, a coleta de lixo, a publicidade oficial etc. E as empreiteiras. Ah, as empreiteiras... Se abrissem essa caixa-preta, seria um deus-nos-acuda generalizado. Como cantava o saudoso Bezerra da Silva: se gritar pega ladrão...

Lembram-se do assassinato de Celso Daniel, prefeito de Santo André? Há a suspeita de que seja um crime político, ligado a um esquema de cobrança de propina das empresas que prestam serviço à prefeitura, com o objetivo de abastecer de recursos o Partido dos Trabalhadores local. Até hoje a investigação encontra entraves para avançar. E o que foi o mensalão, se não o repasse sistemático de dinheiro realizado por uma empresa que tinha interesses nas contas de publicidade do governo federal? Infelizmente, tal modus operandi não é uma exclusividade do PT, como o mensalão tucano em Minas Gerais demonstra.

Há um nexo estrutural ligando tais escândalos e o aumento da passagem de ônibus. O conluio de governos com as empresas que lhes prestam serviços tem extorquido os contribuintes e lesado os cidadãos. Como resultado, assistimos atônitos à baixíssima qualidade dos serviços que, teoricamente, seriam assegurados a nós por direito e à total ausência de vontade política para mudar a situação. A máquina burocrática tornou-se um universo à parte, funcionando autonomamente no sentido de se retroalimentar e perpetuar projetos de poder.

O que está acontecendo agora é que os cidadãos, ao pressentirem que as ações políticas nunca vêm ao encontro de seus interesses, que elas nunca se encaminham em direção ao bem comum, começam a emitir claros sinais de insatisfação, o que foi canalizado pela demanda específica contra o aumento nas passagens de ônibus. Mas o descontentamento é geral, embora difuso, e vem de longe. Como o problema é sistêmico, não se trata de um movimento contra a prefeitura (que é responsável por gerir o transporte público), nem contra o governo do estado (que comanda a polícia) ou contra a União. É uma revolta contra a totalidade de nosso sistema político, por isso as autoridades estão todas desbaratinadas diante da movimentação popular, impossibilitadas de decifrá-la. Enquanto conseguiram manter o povo fora do centro da ribalta — o povo atuando apenas como coadjuvante, como massa de manobra —, elas se acostumaram a enxergar o jogo político como uma disputa partidária, uma luta entre projetos de poder concorrentes. Os últimos acontecimentos, no entanto, conseguiram acuar situação e oposição no corner.

Engana-se quem imagina que a gritaria atual não tem nada a ver com a qualidade geral do serviço público, com os recentes escândalos de corrupção, com o fato de a população ter de arcar com a maior campanha publicitária da história deste país (a Copa do mundo e as Olimpíadas). Todos esses fatores estão emaranhados; os vinte centavos são apenas a ponta do novelo.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Tudo é por mais do que vinte centavos: a luta da classe média

por Diego Ivo

É muito curiosa essa onda de pessoas, até então caladas e à mercê de qualquer discussão política, que de uma hora para a outra tornou-se manifestante e abraçou a causa dos "vinte centavos". Vinte centavos não são nada nem para o mais pobre dos mendigos, que não raro devolveria tão avara esmola se a oferecêssemos. Quem diria para essa classe média que em sua metamorfose dormiu alienada e acordou militante.

Deste modo, os "vinte centavos" parecem ser, justamente por coisa ínfima, o gatilho que faz as pessoas abrirem as suas revoltas inconscientes e abraçar um movimento mais ou menos organizado que, como de praxe, não pode ser coisa racional posto que não tem objeto definido. Ele não é propriamente contra uma coisa, nem a favor de outra, é sempre contra o "estado de coisas". Ou seja, sabe-se lá por que estão protestando e aderindo ao movimento. Trata-se de um objeto que não pode ser combatido ou refutado, uma vez que ele só existe precisamente na subjetividade de cada um dos presentes, nunca nas reclamações dos manifestantes vistas em unidade.

Convém observar que o problema não está em reclamar de algo tão ínfimo quando muitos desses manifestantes possuem bens materiais incompatíveis com a bendita reclamação, como fez sugerir alguns comentaristas. Não há objeção a um manifestante possuir tênis de marca e seu celular ser de última geração, apenas é em alguns casos contraditório. Porém, é sempre de suspeitar uma turba que da noite para o dia se transforma; pois bem, como em qualquer transformação há uma causa, causa essa que eu mais ou menos ignoro no caso presente, mas que sei que não cheira muito bem: o meu espírito aristocrático suspeita que quando há muita mosca em torno de algo, esse algo deve ser muito fétido.

Como sabemos, não haveria tamanha comoção se a causa fosse um problema político específico, como a moralidade, a legalização das drogas, o aborto ou qualquer objeto definido. "Não são os vinte centavos, são todas as outras coisas. Você não entendeu ainda pelo que estamos protestando?", convocou um deles no Facebook, sem também nada explicar. Cada um parecia estar ali protestando ou apoiando o movimento de uma forma subjetiva, inconsciente eu diria. Porém, precisamos atentar ao fato de que não é uma coisa normal: uma onda de manifestações explodiu e parece que ninguém sabe de onde ela veio, apenas se está dizendo que o povo acordou. Mas o que eu vejo é justamente o contrário: que o povo talvez não tenha acordado e esteja dormindo mais profundamente do que nunca. Resta saber qual o objetivo por trás de tamanho movimento, afinal tem alguém pagando a conta e ela não é baixa.

Espanta, de certa forma,  ser a classe média a grande propagadora deste movimento, através das redes sociais com imagens modernas e descoladas e estampando uma bandeira branca do alto de seus edifícios, em solidariedade aos companheiros que estão na rua pondo suas vidas em risco. Justamente essa bendita classe média que há pouco tempo era alvejada pelos ditos intelectuais e formadores de opinião brasileiros, por sua violência e truculência; uma dessas intelectuais, chegando a bradar que odiava toda essa gente bem vestida e bem burguesa: "odeio a classe média", disse ela. E, sabe-se lá por que diabos, é a tal da classe média que, da noite para o dia, resolveu sair às ruas e viver seu momento maio de 68, com um poder de fazer a cidade parar de dar inveja ao PCC. Terá alguma coisa a ver o movimento atual e as recentes críticas à classe média? Sei lá, mas fica aí uma pulga atrás da orelha e quem sabe na próxima greve não apoiarão, em coro, os estudantes da USP.

E para que estas breves linhas não recaiam no mesmo erro dos reclamantes, isto é, de não ter algo mais objetivo de que esteja falando, aqui vai uma leve suspeita que eu tenho. O gatilho para o inconsciente que se tornaram os "vinte centavos" fez despertar uma série de reclamações mais ou menos justas que as pessoas tinham: basicamente, melhores condições de transporte público, emprego, segurança, etc, etc. Reclamações todas elas mais do que justificáveis, repito. Entretanto, ao que tudo indica 99% das pessoas estavam convocando o Estado brasileiro a resolver todos esses problemas, como responsabilidade transferida, reconhecendo-se portanto incapazes no fundo de qualquer ação objetiva que produzisse um bem qualquer. A que esse movimento abre espaço? A um Estado cada vez mais e mais forte, um Estado que não permita o mínimo vácuo onde possa haver defeitos e falhas, em suma um Estado totalitário, pois todos ali pareciam brigar contra o nosso Estado que já está demasiado pequeno para todas as suas necessidades sonhadas.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Idealismo e Violência na Luta pelo Transporte Coletivo

Quero saber uma coisa dos apoiadores do Passe Livre, e daqueles que exaltam o ímpeto transformador dos manifestantes que tomam as ruas: quando, num futuro próximo, manifestações similares forem organizadas contra a legalização do aborto (tema que, sabemos com certeza matemática, aparecerá na agenda política mais cedo ou mais tarde), verão aí também uma bela mostra de idealismo e coragem de uma parte da população ao lutar por seus valores? Se sim, ganharam meu respeito.

De minha parte, não deixo de simpatizar com os manifestantes destes dias, ainda que eu saiba que a proposta que eles defendem faria do transporte coletivo algo ainda pior. A preço zero, teríamos um aumento enorme da demanda, e incentivo nenhum para nenhuma das empresas (que agora receberiam toda sua receita de repasse estatal) oferecer mais e melhores serviços. A mesma falta de incentivo, somada a uma preocupação ainda menor de garantir a eficiência, valeria se o Estado simplesmente tomasse conta de tudo.

Mas sem dúvida: o sistema de transporte público da cidade está muito ruim e muito caro. Os trajetos demoram, as ruas são péssimas e o gerenciamento de trânsito da CET é tenebroso (aliás, ela aumenta sua receita se o trânsito gerar mais infrações; pensem em qual será o incentivo dela para elaborar regras e sinalizações claras, simples e que promovam um trânsito mais fluido). Enfim, a situação é digna de uma revolta. A beleza toda da coisa está no ato de se manifestar. Na crença de que juntos dá para melhorar a realidade em que vivemos.

Há sim algo de belo ai. A mesma beleza que há numa eleição, outra forma de “ação política” que é basicamente inócua. Elas conseguem tocar essa aspiração de fazer do mundo um lugar melhor por meio de um esforço direcionado conjunto. Pena que imponha custos enormes a toda a sociedade.

Quem foi que decidiu que interromper o trânsito de milhares de pessoas é uma forma legítima de se manifestar? Por que é que a bela aspiração de um lado tem o direito de arruinar o dia de outra pessoa? Isso é antissocial. Se querem arruinar o dia de alguém, que arruínem o do prefeito, dos vereadores, dos donos dos cartéis e monopólios. O direito de usar as vias públicas não deveria estar a mercê de causas políticas; nem das boas, nem das más. Mesmo porque a pessoa cujo trajeto é barrado talvez nem concorde com a causa; não é justo que ela pague o pato. Se está difícil de entender a justiça da reivindicação desse sujeito que não quer pagar o pato de uma manifestação popular com a qual ele discorda, pense num caso alternativo: pense numa manifestação em prol de manter o "Deus seja louvado" em nossas cédulas que te impeça de usar dinheiro no dia; ou uma revolta pela legalização do homeschooling que te impeça de entrar na escola ou na faculdade.

É um fato: vivemos num mundo onde o Estado pode atrapalhar muito nossa vida. Assim, participar da política impõe-se como necessidade. Essa participação não precisa, contudo, obedecer à lógica da baderna e da violência. Nesta segunda-feira, 17/06, enquanto o movimento do Passe Livre organiza mais uma marcha gigantesca no Largo da Batata, uma outra manifestação, bem menor, se encontrará no vão do MASP às 18:00. É o Protesto pela Desestatização do Transporte Coletivo. Um protesto pacífico, que visa a informar e mobilizar os transeuntes, propondo soluções radicalmente diferentes para o problema do transporte coletivo, que leva, justificadamente, tantos a se revoltar. Estaremos lá não só para propor e cobrar soluções, mas também para vivenciar um outro tipo de protesto, que não faz dos cidadãos honestos reféns para conseguir o que deseja. A beleza do idealismo sem o autoritarismo que a ele se associou. Serão poucos os presentes no ato? Sim, serão poucos. E serão bons.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Na lata da canção cabe a poesia? Resposta de um crítico vira-lata a Bruno Tolentino

por Emmanuel Santiago

Tendo escrito um texto sobre o que, a meu ver, é um erro de avaliação de Bruno Tolentino quanto à obra de Drummond, não queria parecer implicante com a autor de A balada do cárcere, mas, quase toda vez que acompanho uma discussão que procure definir se letra de música é ou não uma forma de poesia, deparo com formulações do tipo: “Como já   provou Bruno Tolentino, letra de música e poema não são a mesma coisa; pertencem a gêneros distintos”. Não sei ao certo em que ocasião Tolentino teria demonstrado por A + B que canção ≠ poema; o que conheço é uma entrevista dada por ele à Veja, na qual se toca no assunto. Como ignoro o caminho pelo qual o poeta chegou a suas conclusões, concentrar-me-ei nos argumentos genéricos daqueles que, vez por outra, evocam sua autoridade para evitar entrar no mérito da questão.

“Canção e poema são gêneros distintos”. O primeiro problema desta afirmação é uma filigrana teórica, digna de um sábio bizantino, ocupado a discutir o sexo dos anjos enquanto o exército inimigo assoma às muralhas da cidade. A rigor, poesia não é um gênero. Antes que o uso de “literatura” se disseminasse no século XIX, “poesia” era o termo geralmente empregado para se referir às obras estéticas de natureza verbal, fossem elas escritas ou não (a bem da verdade, aquilo o que os gregos antigos chamavam de poíēsis engloba um espectro muito amplo de atividades artísticas e artesanais). Com a popularização das formas literárias em prosa, já nos limiares da era burguesa, “poesia” passou a designar exclusivamente as obras escritas em versos. Gradativamente, os gêneros dramático e diegético (ou épico, ou narrativo, conforme a corrente teórica que se escolha) migraram para a prosa, deixando a poesia entregue ao gênero lírico e, desde então, lírica e poesia costumam ser, no senso-comum, tomadas como sinônimos, mas não são.

Se nos ativermos à definição “poesia é uma composição verbal de natureza estética concebida em versos”, então sim, toda canção é poética, toda letra de música é um poema. Mas parece que não é apenas isso que vai pela cabeça das pessoas quando se põem a discutir se letra de música é ou não poesia. Assim sendo, outra possibilidade de abordar a questão seria: “a canção faz parte do gênero lírico ou constitui um gênero diverso?”.

Como é amplamente conhecido, poesia e canção possuem uma mesma origem; mais do que isso: historicamente, aquela parece derivar desta. Isto pode ser constatado não apenas passando em revista os primórdios da arte poética naquelas culturas que deitaram as raízes da civilização ocidental, como também observando aquelas comunidades que, ainda hoje, permanecem à margem do universo da escrita. Originariamente, poesia é palavra cantada; é na canção que se manifesta, pela primeira vez, o gênio poético humano. Pelo menos é o que afirma Segismundo Spina, em Na madrugada das formas poéticas, amparado por uma consistente tradição de estudos antropológicos: “A poesia primitiva, entretanto, não é exclusivamente a poesia dos povos pré-letrados, mas a poesia que está ligada ao canto, indiferenciada, anônima e coletiva. É a poesia no seu estágio ancilar, isto é, subordinada à música e à coreografia, mais especialmente àquela. (...) A função ancilar da poesia está representada pela associação em que viveu com a música, de certo modo com a dança, antes que surgisse a pessoa do poeta, a poesia individual” (SPINA, 2002, p. 15). Segundo o lingusta Roman Jakobson, mesmo em comunidades que desconhecem a música instrumental, a poesia surge integrada a uma modalidade vocal de música.

Sabe-se bem que o próprio nome do gênero lírico foi retirado do instrumento — a lira — que fazia o acompanhamento das composições poéticas que formavam seu repertório entre os gregos. Além disso, todos os demais gêneros ditos poéticos também recebiam alguma forma de acompanhamento musical, seja com instrumentos de cordas, de sopro ou percussivos, tanto que, em alguns textos de Platão, música e poesia são tratadas como sinônimos. Vale lembrar, conforme Albin Lesky apontou, que os enredos da tragédia ática têm sua origem nos corais que transmitiam a história dos heróis da pólis, constituindo um material que, depois, encontrar-se-ia com o cerimonial do culto a Dionísio, configurando o drama grego clássico. Não apenas o coro permaneceu como parte do teatro dos gregos antigos, como ele ainda evoluía coreograficamente em torno do altar principal ao som de uma música, e a função de treinar e reger o coro das apresentações teatrais era considerada uma honra pública, disputada por algumas das figuras políticas mais proeminentes de Atenas.

Consta que tenham sido os sábios alexandrinos os primeiros a dissociar poesia e música. Não podemos esquecer, porém, a contribuição que os trovadores medievais representaram para o surgimento da poesia moderna europeia, como no caso da influência direta dos provençais sobre a obra lírica de Dante e Petrarca. Tais trovadores escreviam poemas exclusivamente para suas composições musicais (procurando o equilíbrio perfeito entre motz el son — palavra e som), sem dizer que muitas das formas poéticas tradicionais se originaram das formas do cancioneiro popular, trazendo ainda características estruturais relacionadas com as necessidades específicas do canto, como a própria métrica. O soneto, por exemplo, deriva de uma forma de canção. Não por acaso, a poesia medieval portuguesa está organizada em cancioneiros e suas formas são todas relacionadas ao canto: cantigas de amigo, de amor, de escárnio e de maldizer.

Por todos esses fatos que acabo de elencar, se a canção constitui um gênero próprio, à parte do lírico, faz-se necessário considerar que tal separação se deu por meio de um processo historicamente construído e não está dada na origem, portanto nem na “essência”, dos fenômenos aqui considerados. No máximo, pode-se dizer que a canção não corresponde a uma concepção moderna do que seja a poesia. Mas então o que é, afinal de contas, isso o que estamos chamando de “poesia”? Muitas foram as tentativas de definir o que ela é, mas nenhuma mostrou-se definitiva. De agora em diante, tratarei de algumas definições amplamente difundidas, procurando observar até que ponto elas permitem ou não o enquadramento da canção no domínio do poético.

domingo, 9 de junho de 2013

Crítica ao post de Adolfo Sachsida

Esses dias, Adolfo Sachsida publicou, em seu blog, um "Conselho aos Seguidores de Von Mises". Segundo ele, a postura intelectual de muitos liberais brasileiros deixa a desejar. Perderam de vista a realidade, transformando-se em seguidores fanáticos de Mises, que não ousam discordar de uma linha dele.

Nunca vi esses tais seguidores ferrenhos de Mises. Quem, mesmo no IMB, defende a conscrição militar em tempo de guerra? Ou a proibição (estatal, decerto) de reservas fracionárias nos bancos? Ou a imposição do padrão-ouro? Quem, dentre os libertários, seria capaz de fazer uma afirmação como esta? "Government as such is not only not an evil, but the most necessary and beneficial institution, as without it no lasting social cooperation and no civilization could be developed and preserved. It is a means to cope with an inherent imperfection of many, perhaps of the majority of all people." ["O governo enquanto tal não só não é um mal, como é a instituição mais benéfica e necessária, já que sem ela seria impossível desenvolver e preservar a civilização ou qualquer cooperação social duradoura. Ele é um meio para lidar com a imperfeição inerente de muitos, talvez da maioria das pessoas."] (The Ultimate Foundation of Economic Science, cap. 5, seção 10).

Mises não é o X da questão, e é estranho que Sachsida não veja isso. O X é Rothbard. Mas, acrescento, também não encontro seguidores de Rothbard que façam dele uma Bíblia. Sei que muitos libertários, por exemplo, têm uma visão diferente de como se estendem os direitos dos pais sobre suas crianças. Encontro, isso sim, gente que aplica com consistência absoluta o princípio da não iniciação de agressão (PNA) que Rothbard defendia. São coisas muito diferentes.

No lugar dos três critérios elencados por Sachsida (que, fora o primeiro - defesa da propriedade privada -, parecem um tanto redundantes e/ou desnecessários, dependendo de como se os lê), os libertários da corrente rothbardiana defendem um critério único para determinar o grau de liberalismo: grau de adesão ao PNA ou ao direito irrestrito à propriedade privada (não sei se as duas coisas são equivalentes, se uma decorre da outra; aqui não é muito relevante e tomá-las-ei como sinônimas). Por essa definição, que é simples e, ao que me parece, condizente com o senso comum, é muito simples determinar quem é ou não liberal em diversas questões. Você defende que um Estado cobre impostos para manter um sistema de tribunais e polícia? Bom, então você é menos liberal do que outro que considera mesmo esse imposto mínimo uma violação inaceitável do PNA ou da propriedade privada. Não há polêmica nisso, há? Eu mesmo, que não sou um liberal puro sangue pela definição (basicamente porque o PNA não me convence da forma absoluta que os libertários demandam), não vejo problema em dizer: sim, comparado a alguém como Hoppe ou como Fernando Chiocca, sou menos liberal. Comparado a alguém como o Sachsida, sou provavelmente mais liberal. Quem disse que a melhor posição é aquela que maximiza o liberalismo (conforme definido aqui - respeito à propriedade privada)?

Comparados ao mainstream do pensamento político, eu, Chiocca e Sachsida somos, os três, liberais. Estamos apenas medindo o grau de adesão a um princípio, e não expressando uma superioridade moral (ainda que, para o defensor da PNA, quanto menos liberal, mais imoral). 

Por trás dessa mera medição de liberalismo, o que está em jogo são duas formas distintas e independentes de se defender a liberdade individual. Uma delas mais baseada nas consequências, e portanto mais próxima a considerações econômicas, e outra preocupada com uma certa visão de princípios éticos. Para quem enxerga o PNA como um princípio moral, não há possibilidade alguma de defender a existência do Estado, mesmo que se se prove, por A + B, que a imensa maioria da população sairia beneficiada da existência de um Estado mínimo. A questão nem se coloca. A ciência econômica pode dar ainda mais motivos para se defender a liberdade, mas jamais será capaz de provar nada contra ela.

É natural que os liberais mais afeitos à economia e à análise das consequências de políticas liberais sejam menos radicais do que os principistas. Deles, apenas uma pequena parcela defenderá uma ordem 100% liberal, ao passo que todos os principistas a defendem. Mas não é aí que reside a principal diferença.

Há muitos libertários que defendem o anarco-capitalismo com argumentos econômicos, ou de ética das virtudes (que não tem nada a ver com o PNA), ou o que seja. Nenhum desses, via de regra, considerará que discordar dele seja imoral. É aí que vemos a diferença de postura. Para o defensor da PNA o caso é exatamente esse: desviar dele em qualquer detalhe é já abrir mão de um princípio inegociável, e portanto é uma ofensa moral, própria de um criminoso em potencial. "Ah, então você considera justo colocar uma ARMA NA MINHA CABEÇA para me obrigar a financiar um sistema de tribunais e cortes para julgar crimes? Medo de você!" Acho que os libertários do PNA erram ao inferir que discordar do PNA em algum caso faça do sujeito alguém imoral. Ter uma opinião errada acerca da moral e ser imoral são coisas diferentes; mas sem dúvida é forte a tendência de identificá-las (direitistas e católicos também o fazem a torto e a direito).

Ser radical, levar um princípio a sua consequência lógica inescapável, é um tipo de mérito intelectual. É bom que haja pessoas que o façam. Essas pessoas serão as mais liberais no sentido político definido acima. Serão pouco liberais em um outro sentido: o de prezar um clima de serenidade intelectual, ceticismo e polidez na discussão. Historicamente, muitos liberais políticos foram também liberais nesse outro sentido. Mas nem todos: Ayn Rand era bastante liberal politicamente, mas pessoalmente suas atitudes e opiniões eram de uma intransigência inigualável (e, pra completar, não defendia o PNA).

Quanto a esse sentido pessoal de ser liberal, faço uma triste constatação: para se chegar à verdade e ter conclusões mais precisas, é bom ser liberal - prezar a opinião alheia, reconhecer as limitações das próprias, ouvir a todos, etc. Para efetuar mudanças políticas, contudo, é um fator negativo. Céticos cautelosos, sempre corteses e prontos a mudar suas opiniões caso evidências melhores surjam, jamais formarão um movimento político. Sim, a organização política de nossas sociedades impõe um conflito entre virtude  intelectual pessoal (penso que essa serenidade seja algo admirável) e capacidade de fazer o bem social.

Alguém aqui quer um mundo mais liberal, isto é, com menos Estado? Então é melhor se acostumar com seus novos colegas, que não, não seriam bem-vindos e nem teriam interesse de participar do encontro da ANPEC. Há gente que se persuadirá com argumentos intelectuais mais refinados, e há gente que se persuadirá com posicionamentos simples, claros e cheios de convicção. Cabe a cada um tentar, na medida do possível, unir as duas coisas; só não se iluda: há uma rudeza incompatível com a academia que é, contudo, imprescindível na organização política.

Voltando ao PNA: como já disse, não me convence. Não é trivial de se refutar, mas também não persuade quem já não o aceita de alguma maneira. É mais uma corrente liberal/libertária que está aí, e que tem muita relevância, e da qual seria uma pena abrir mão apenas para nos mantermos no campo sagrado da respeitabilidade acadêmica e da discussão polída. Reconheçamos: aos olhos de alguns aliados nossos, seremos vistos como "menos puros". Aos meus olhos, eles, embora mais liberais do que eu, é que estão equivocados em alguns pontos; a vida segue. Mesmo assim, podemos contribuir de diferentes maneiras, sem parar a todo momento para exigir uma consideração igual dos defensores da PNA.

É pura utopia minha querer ver Constantino, Sachsida, os irmãos Chiocca e outros brindando um chopp numa terça libertária, deixando as mágoas para trás e aceitando que sempre haverá diferenças irreconciliáveis?

sábado, 8 de junho de 2013

Jovens poetas e o cadáver inútil de Rilke

O texto abaixo é minha resposta a um e-mail que me enviou José Renato Lima.

*** 

José,

Acabo de me dar conta da existência deste gênero literário: resposta a carta deixada longamente por responder. Ele é facilmente identificável. Começa sempre com o devido pedido de desculpas pelo tempo em que o escriba deixou seu interlocutor “no vácuo”; em seguida, elencam-se os motivos para a deplorável demora e afirma-se ao interlocutor o quanto, o tempo todo, se endereçava a ele uma resposta imaginária; e, finalmente, discutem-se quaisquer que sejam os assuntos tratados na carta a que se responde. (Sim, Rilke, dirigindo-se ao jovem poeta, é por excelência o pai do gênero.)

Não respondi seu e-mail antes porque... estou a fim de ficar um pouco desligada do mundo, mesmo. E também porque não tenho conseguido pensar em poesia. Penso, mas penso pela metade, ou menos que isso; os últimos poemas que escrevi foram todos arrancados na marra de inspirações incompletas; teimei em concluí-los apenas para sentir o gostinho de colocar um ponto final num quadro de versos, mas não me satisfiz com nenhum.

O mestrado atrapalha: se eu passo o dia lendo e/ou escrevendo sobre a comuna camponesa russa (e é o que mais tenho feito), não sobra muita alma para a poesia. Pretendo, em julho, tirar algumas semanas de férias só para ler literatura e tentar colocar em prática alguns projetos literários.

Quanto à pergunta que você fez: "E agora, como fazer uma poesia viva hoje, par a par com os produtos da nossa alta cultura poética?" – É evidentemente uma questão para a qual não há uma única resposta, já pelo fato de que não há um só modo de interpretá-la. Se eu disser a um jovem brasileiro que para se escrever poesia em português é preciso absorver o sumo da tradição poética ocidental, e mais o que se conseguir das outras, e escrever constantemente, dominar as mais variadas formas fixas, conhecer diferentes idiomas, etc – isso ainda é apenas o começo do esforço (sua, por assim dizer, condição de possibilidade) para engendrar-se a uma voz poética eficaz. Eis o que me tem obcecado ultimamente – o problema da eficácia cultural da poesia. Erudição e habilidade técnica não solucionam a pergunta anterior ao “como”: que diabos quer dizer “fazer uma poesia viva hoje”? O que é poesia viva, para início de conversa? É poesia bem acabada formalmente? É poesia que fale ao coração de nossa época (mas o que é o coração de nossa época?)? É um diálogo com o contemporâneo obtido de uma reflexão sobre o passado? Ou vice-versa?... 

“Words, words, words!” E, enquanto isso, nada ameniza a sorte do jovem poeta brasileiro esmagado entre a página em branco e uma voz sem forma, sem quê nem pra quê. O jovem poeta brasileiro e seus versos de circunstância, e que quando decide alçar-se num voo mais pretensioso precisa despedir-se de sua identidade de “jovem” e “brasileiro”, precisa aprender a estar só e a falar para paredes que, provavelmente, nunca serão mais do que paredes – provavelmente não haverá a renovação da cultura, provavelmente não modificarão alma alguma os seus versos, que provavelmente não serão lembrados como os de Dante. Digo isso não por ter motivos concretos para prever qualquer coisa, mas apenas porque é preciso saber aceitar a possibilidade do fracasso; o poeta precisa aprender a não desesperar mesmo em meio às piores circunstâncias. Digamos, então, que o pior suceda – consideremos que sucederá necessariamente. É muito fácil ser poeta diante do prospecto de um renascimento das letras nacionais ou algo que o valha; o que eu quero é ver poetas capazes de escrever para o nada, para o abismo, entoando louvores à alegria – poetas anônimos e fadados ao esquecimento mas fiéis ao convite que nos faz a cada um de nós a beleza. Fiéis não apenas em sentimento, mas principalmente em disposição para o trabalho. Que o poeta em terras devastadas não se contente com chorar pitangas!

Pergunto-me se quaisquer versos escritos nos dias de hoje, por melhores que sejam, serão “lembrados”. Uma obra poética feita em símbolo de uma nação, de um povo, e que carregue adiante, na esteira dos tempos, a alma daquele povo. Pode ser que venha de fato a exprimir a alma de um povo. Mas carregá-la adiante?... Não sei se isso ainda é papel da poesia.

Repito: que diabos quer dizer “fazer poesia viva hoje”?! Por que, aliás, fazer poesia, se há o cinema, as artes plásticas, a música, a dança, o teatro – formas artísticas de tão maior apelo junto ao grande público? Há algo que se diga exclusivamente por meio da poesia, e que a justifique enquanto forma de expressão sui generis? Sim, a poesia devolve às palavras de uma língua sua pluralidade semântica original, e tem toda aquela coisa da consagração do instante, eu sei, mas a mim continua sendo um mistério de que modo a riqueza da poesia se devolve à realidade cognitiva, linguística e psicológica de um povo QUE NÃO LÊ.  Há sentido em se cantar um belo canto entre ouvidos moucos? Bruno Tolentino aconteceu à cultura brasileira, e ainda assim é possível ouvir o assobio do abismo não muito distante em nosso horizonte atual... Temos de dar mais tempo a que a obra tolentiniana faça sentir seus efeitos? Talvez. De fato, tenho visto poetas brotarem da influência de Tolentino. E esse é o único modo como consigo compreender, por enquanto, a eficácia cultural da poesia contemporânea: no intercurso entre indivíduos e obras; estabelece-se uma linguagem em comum entre uma pequena rede de buriladores da língua, que se modificam mutuamente; de que modo seu trabalho ecoará no “todo social”, grosseiramente iletrado no caso brasileiro, eu não saberia dizer, mas, pensando bem, há de haver um modo, pelo seguinte: há continuamente indivíduos sendo convidados a produzir poesia; é uma vocação estranha, em nossos dias até vergonhosa, que você só pode declarar em público disfarçando-a de passatempo, mas é real. E, se não fosse útil, não existiria. Será que isso faz sentido?

Enfim, José, sei que não respondi nada e só fiz mais confusão sobre confusão. Mas isto é o que posso oferecer nesse momento.

Pessoalmente, minha atitude para com tudo isso tem sido esta: mesmo sem entender bem por que, buscar a poesia; buscá-la no que há de mais “eu” em mim; o velho desafio de erguer o particularíssimo em universal. Não me refiro tanto à poesia “sobre impressões e sentimentos pessoais” como à poesia cuja forma é ela mesma moldada pelo caráter do indivíduo autor. Definição confusa, eu sei. Quero dizer que não se trata de “escrever sobre o que vejo e sinto”, mas de escrever sobre o que quer que seja, pela perspectiva do que eu sou. O poeta tem de ser capaz de escrever sobre tudo, absolutamente tudo; restringir-se aos temas de sua “mais íntima intimidade” é o cancro da má poesia recente. A mais íntima intimidade não deve ser conteúdo, deve ser forma. Desde que me dei conta disso, tenho tentado escrever sobre temas “exteriores a mim” – por exemplo, dar formato poético ao enredo de uma fábula ou conto qualquer. Isso é muito útil ao treino da expressividade; toda a pujança interior do poeta concentra-se no modo de dizer. (Os poemas que tenho postado no meu blog são a raspa do tacho: as tentativas em cujo potencial eu realmente confio estão aqui guardadas, fragmentos e mais fragmentos, esperando por uma fase onde haja, se não inspiração, ao menos concentração.)

E, finalmente, tento temperar tudo isso com a consciência de que posso – o que, aliás, é muito provável – não vir a ser poeta nenhuma. Sendo bem sincera, nunca me desceu bem essa coisa do Rilke de “se não puder escrever, morrerei”. Acredito que alguns escritores sintam-se assim. Clarice Lispector era uma delas. Mas propor essa questão a um jovem poeta, o qual está ainda a tatear sua possível vocação, me parece meio arriscado. Nunca vi aspirante a poeta que não se julgasse fulminado por um raio caso privado da possibilidade de escrever. Às vezes a coisa é sincera e é verdadeiro sintoma de vocação, mas acho que seria mais prudente da parte de Rilke sondar a disposição de seu pupilo por meio de questão menos arrojada, menos tempestuosa... Até porque, se o sujeito diz que se quer poeta, está meio que obrigado a declarar-se ameaçado de morte por tão terrível talento, sob o risco de cair em irremediável contradição.

De resto, consola-me a possibilidade mais plausível de que, na ausência de talento poético, ainda poderei ter filhos.

Já escrevi demais e não cheguei a grandes conclusões. Agradeço novamente por ter confiado a mim suas angústias, José. E peço desculpas novamente por não dispor de nada como respostas.

Um abraço,


Lorena

terça-feira, 4 de junho de 2013

O problema do homeschooling é o schooling

Deixemos claro: defendo que os pais tenham pleno direito de educar seus filhos como preferirem; na escola, em casa, ou onde mais for. Dito isso, há uma coisa que me incomoda na abordagem que mais vejo associada ao ensino domiciliar: a ideia de que ensinar em casa é, ou deveria ser, pai e mãe dando aula para os filhos seguindo o currículo da educação escolar.

Sou só eu que vejo algo de esdrúxulo em pais ensinando equações de mecânica dos gases aos filhos na sala de casa? Não é nada estranho se um dos pais é físico. Mas em todos os outros casos... Imagine uma mãe, que é dona de casa, ou advogada, ou poeta, lendo uma cartilha de física de ensino médio da qual ela não lembra nada,  para então repassar o conteúdo ao filho, enquanto seus conhecimentos dos afazeres domésticos, ou do Direito, ou de literatura, lhe são sonegados. É uma enorme perda de oportunidade, um uso péssimo dos recursos dos pais (no caso, de seu tempo e suas mentes), ter que ensinar ao filho algo completamente distante daquilo que lhes interessa e que eles dominam. O ensino domiciliar precisa fazer bom uso dos diferenciais que o domicílio tem a oferecer; e que se dane a padronização do currículo nacional!

Um filho que não vai à escola tem à sua disposição alternativas de que os escolarizados carecem: pode, por exemplo, aprender com a mãe (ou com o pai) ou com os empregados as tarefas domésticas: lavar, cozinhar, planejar um orçamento. Pode acompanhar seus pais em suas profissões, beneficiando-se da possibilidade de aprender e colocar em prática diversas disciplinas. Nada mais natural, por exemplo, que um filho acompanhe um pai mecânico à oficina e o ajude em diversos trabalhos; ou que acompanhe a mãe ao escritório e formate a apresentação de Power-Point para o dia seguinte, ou que levante fontes para uma pesquisa de material; ou atenda o telefone. Poderia até ser remunerado por isso, e ter desde cedo a experiência gratificante de receber por um trabalho ("earn"; verbo que nos faz falta!). Sim - ó meu Deus! -, estou defendendo o trabalho infanto-juvenil; estou ousando supor que o mundo do trabalho e do comércio seja um campo rico de oportunidades, e não um pesadelo opressor do qual devemos manter nossos filhos alheios e ignorantes.

Essas oportunidades de aprendizado são tão ricas quanto as melhores aulas, embora eu imagine que, em um mercado complexo cujo funcionamento depende, em vários âmbitos, de conhecimento teórico, não as substituam de todo. Mas essas aulas deveriam, elas também, fazer uso do conhecimento e habilidades dos pais. Se seu pai é advogado, então que tal aprender, ao invés de química de coloides, o funcionamento do Estado brasileiro, ter uma noção básica de nosso sistema de leis, do Direito, etc.? Se a mãe é economista, que tal trocar um pouco das aulas sobre poesia arcadista por umas de funcionamento do mercado e da importância do sistema de preços? Se o avô é um astrônomo amador, que ensine mais astronomia e menos sobre a dialética campo-cidade, ou sobre o número imaginário, ou sobre as organelas celulares.

O conhecimento humano é vasto demais, e o universo sobre o qual ele versa, mais ainda, para que tudo possa ser coberto, mesmo em seus rudimentos, em qualquer currículo. É ridículo esperar que pais, em casa, deem um currículo que numa escola seria dado por diversos profissionais de diversas áreas. Só depõe contra nosso sistema escolar que, mesmo jogando com as regras do ensino escolarizado, filhos do ensino domiciliar se saiam melhor.

Um raciocínio similar se aplica às próprias escolas. Quem definiu que saber em detalhes os ciclos energéticos das organelas celulares é mais importante do que saber os rudimentos do funcionamento do mercado? Por que é que nem se toca em temas essenciais para a vida no Brasil como legislação brasileira, composição e funcionamento do Estado, ou mesmo noções básicas de Direito? Por que tanta química orgânica e tão pouca astronomia? Ou arquitetura. Latim. Kant. História medieval. Programação. Escultura. Exegese bíblica e corânica. Teologia. Teatro. Física quântica. Tipografia. Psicologia. Um currículo meu seria muito diferente do currículo padrão que encontramos em todas as escolas. "E por que o seu deve ser imposto a todos??" - É exatamente isso que não quero. Que as escolas tenham total liberdade para bolar os conteúdos e o método de ensiná-los, e que os pais escolham aquelas mais adequadas aos filhos!

Há conteúdos que fornecem ferramental teórico, e há conteúdos específicos (claro, há uma dispersão gradual, e não uma fronteira, entre um e outro). Os ferramentais mais fundamentais: linguagem oral e escrita, matemática, pensamento lógico e crítico, devem integrar qualquer educação. Mas quanto aos conteúdos específicos, há uma gama enorme de possibilidades. Na minha opinião, é uma pena que todos os colégios deem espaço tão grande para minúcias das ciências naturais (especialmente para equações químicas e físicas que são apenas decoradas e nada mais), e tão pouco para outras disciplinas tão ou mais importantes.

Posso estar vendo dificuldades inexistentes. As escolas brasileiras talvez já tenham uma boa liberdade, e acabam sendo pressionadas pelos próprios pais a dar os conteúdos cobrados nos vestibulares. Por mim, vestibular se resolve com um bom cursinho, mas talvez nem todos os pais tenham a mesma despreocupação. Fica a pergunta, então: por que os vestibulares exigem exatamente esse currículo (com a adoção generalizada do ENEM, cujo foco é mais ferramental e interdisciplinar - ou me engano? - talvez isso mude)? Seja como for, devemos acolher e celebrar o ensino domiciliar, ainda que não seja nossa opção (não é a minha), assim como total liberdade curricular para as escolas e até mesmo a desescolarização do aprendizado.

Quanto mais liberdade de escolha, mais competição. Quanto mais competição, melhor a relação qualidade/preço que as escolas têm que oferecer para manter seus alunos; e maior o incentivo para se ser criativo e inovador, melhorando sempre. Para os que temem que um pai ou outro bolasse um currículo pirado que minasse a educação do filho (deixando a criança socializar-se com outras - direito humano básico da criança - o risco de um total isolamento cognitivo já cairia bastante), considerem o seguinte: meu colégio, um dos melhores do Brasil, dedicou meses a ensinar a classe, na aula de geografia, a diferença entre mais-valia absoluta e mais-valia relativa. A piração curricular já está aí, sendo ensinada aos seus filhos. E a falta de competição, de diferentes abordagens (não sei se por entrave legal ou por caretice dos pais), garante a permanência de seu reinado.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Promessa e Matrimônio


Day Teixeira afirma que o “divórcio só se explica – e aplica – numa sociedade que já não entende mais para que existe o casamento”. Eu iria um pouco mais longe e diria que só se explica e aplica numa sociedade que já não entende mais para que ela própria existe. A aliança matrimonial, o sinal de empenho mútuo, é a lembrança mais constante que um filho, observando seus pais, pode ter de que determinadas escolhas são graves. De que há um limite mais ou menos ponderável à ação humana que não lhe é imposto por simples impossibilidade (teoricamente, um cônjuge insatisfeito pode a qualquer momento mandar-se para a China), mas que é tanto mais humano porque auto-imposto por deliberada escolha. É um daqueles paradoxos práticos que não se resolvem sem recurso a algumas ferramentas de metafísica: a liberdade do homem (a sua necessidade, fatalidade de livre-arbítrio) pode se afirmar mais acentuadamente por meio da abdicação consciente de um tipo de ação que acarretaria em abrandamento da intensidade de suas experiências (a superficialidade de que tratarei adiante). Pois domar a sexualidade é incomparavelmente mais difícil que deixar-se, por assim dizer, ser cavalgado por ela. E, porque é uma escolha muito mais difícil, é uma escolha muito mais livre. Mais adulta, aliás.

Vez ou outra já esbarrei em algumas páginas, de diferentes autores, nas quais se observava: o ser humano é o único bicho capaz de fazer promessas. Nenhum outro animal tem capacidade similar; é um dos nossos dados antropológicos centrais. A cada vez que um amigo nos diz: “Semana que vem irei te visitar!”, ele está lançando mão do elemento mais abstrato, sério e especificamente humano de que dispomos. Não é à toa que, em todas as culturas, os textos mais impressivos e lingüisticamente mais duradouros são aqueles que portam promessas, as promessas mais refinadas porque tornadas já irrevogavelmente cumpridas – os textos proféticos, enfim.

Mas em que consiste uma promessa? Por insuficiente que seja, por ora me contento com a seguinte definição: promessa é o ato deliberado, seja público ou não, pelo qual um indivíduo se compromete consigo mesmo – e eventualmente com outrem – a se empenhar continuamente para realizar um determinado ato em futuro próximo ou distante. Dessa definição provisória e imediata se depreende o fato, bastante simples mas não tão óbvio, de que a promessa é um dos principais meios (talvez o principal) pelos quais um indivíduo integra sua consciência e sua conduta em meio à multiplicidade de fatos que lhe ocorre. “Eu dou a minha palavra”, diz o homem – e o homem que o diz, empenhando-se em cumprir aquilo com que se compromete, é homem mesmo quando está se comprometendo com um assassínio porque será sempre aquele indivíduo comprometido com aquela finalidade, e tais unidade de sujeito e ação é que darão um mínimo de sentido humano a uma massa de fatos que, em si mesma, é amorfa e pouco significativa. Sem promessa não existe história. O comprometido é, assim, basicamente um tenaz que às coisas imprime sentido. As adversidades lhe afiam a tenacidade. Tornam-lhe um obcecado sadio. O obcecado a toda a prova.

(Talvez seja por isso que, pessoalmente, eu simpatize tanto – embora não especialmente – com os monotemáticos. Na década de 1930, se não me engano, Cioran escreveu um artigo devastador sobre Eliade cujo tema era a repulsa que lhe causava o enciclopedismo deste último. Cioran não acreditava que um homem pudesse ser tão flexível, tão adaptável a sistemas filosóficos e religiosos tão diversos, e que, sendo-o, continuasse a ser... um homem sério. O “erudito” lhe nauseava; e, embora discordando, como em parte mais tarde o próprio Cioran reveria sua posição sobre o amigo em Exercícios de admiração, eu o compreendo. De modo geral, grande parte dos que – principalmente em artes – hoje reconhecemos como “gênios” eram homens de duas ou no máximo três idéias, que as burilaram a vida toda e morreram sem delas se livrar. Como se todo o conhecimento adquirido girasse em torno da fidelidade ao enfrentamento e resolução de uns poucos problemas com que estavam comprometidos pessoalmente. “Os gênios, invariavelmente, são filhos espúrios de idéias fixas. Eles as aceitam, as levam para passear, põem-nas a dormir, mas ao fim do dia vão à mesa escrever só porque nunca as docilizam inteiramente. Borges jamais conseguiu solucionar a incógnita de por que era ele Borges e não você ou eu – e, ainda, por que o é em um dado tempo (e não noutro), ocupando um certo espaço (e não outro), tendo tal proporção (e não outra). E, porque nunca compreendeu nada disso, escreveu sua obra. François Villon tinha a ‘paixão pelas ruínas’, como gosta de escrever Marco Lucchesi – e se o topos latino do ubi sunt? (‘onde estão?’) a Villon fosse mero expediente retórico, e não real surpresa frente à irrevogabilidade do tempo (surpresa que a ele, um assassino, um proscrito, deveria ser especialmente dolorosa), não teria escrito a ‘Ballade des Dames du Temps Jadis’” – se é que o leitor me permite citar a mim mesmo.)

A fidelidade a um propósito é o que nos permite nos erguermos um pouco acima da fatalidade temporal. Sem o sentido da promessa, homem algum saberia o que é o futuro para além de uma extensão mecânica e fatal do que se vive hoje. E por isso desconheceria o que é o passado, não lhe ocorreria que o que passa pode ser integrado em um projeto executável com um sentido latente; sequer suspeitaria, assim, o que passava pela cabeça de um homem do mundo antigo para quem o seu próprio nome era um destino e uma responsabilidade – em suma, o judeu, o filho da promessa, da terra prometida, lhe seria o maior monstro a andar sobre a terra.

Pois bem: o matrimônio é a mais bem acabada solução prática, pela adoção de um compromisso, de dois problemas atormentadores – a solidão e a superficialidade*. A transitoriedade das relações instáveis pode ser uma prática razoavelmente benéfica a curto prazo, no sentido de dotar o indivíduo de alguma experiência, seja por não dispor de meios menos conflituosos de adquiri-la (através de livros, numa igreja, junto a um amigo mais velho etc.), seja por não dispor de fortaleza. Mas sempre será uma superficialidade, por mais intensas que sejam as experiências daí decorrentes. Afirmo isso porque falta a essas vivências o teste cabal de sua saúde e verdade, que é dado pela constância, continuidade e resignação consciente. Como a qualquer momento o indivíduo pode se desembaraçar desse tipo de situação sem quase prestar contas a si mesmo ou a outros, como ele não deu a sua palavra, tais vivências podem morrer e ser sepultadas a qualquer momento, por mais que deixem impressões duráveis no indivíduo. A solidão, aí, é sempre uma saída de emergência, e onde quer que tal ocorra a solidão será não facultativa, mas impositiva; ela será o complemento binário do desapego; será a circunferência virtual em torno de um centro frouxo. O único meio de escapar deste segundo mal, a solidão, através da realização do amor erótico, é pôr-se a serviço de algo que não se sujeita só às disposições atuais do indivíduo, mas também às de outro, lançando-se ainda para adiante das disposições atuais deste último – sobretudo se diante de uma imagem a ser honrada (como a da caridade de Cristo, por exemplo). Bons momentos, maus momentos, cumprimentos da promessa, quebras da promessa – tudo é percalço da promessa, afinal, e é bom que seja assim. Diz Chesterton: “A família é um fato mesmo quando não é um fato agradável, e um homem é parte da sua esposa mesmo quando não quer sê-lo. Os dois são uma só carne – sim, até mesmo quando não são um só espírito. O ser humano é duplo. O ser humano é um quadrúpede.”

Um filho, então, é o que de mais concreto podemos encontrar como motivo e estímulo para o cumprimento daquilo que nos obriga. Filhos, tenho a impressão (tenho a impressão porque ainda não tenho filhos), são um tremendo sacrifício. Esse é o motivo pelo qual andam fora de moda e esse é justamente o motivo pelo qual acho eles devam sempre estar na moda. Não é que uma vida sem sacrifícios seja pouco nobre. É o caso de que uma vida sem sacrifícios simplesmente não existe. É no máximo uma fantasia publicitária. Essa é a razão de a vida adulta ser inaugurada, consciente ou inconscientemente, pela escolha de quais sacrifícios o indivíduo fará. E essa é uma questão que não chega sequer a ser compreensível a uma criança. O que, por sinal, nos faz ver boa parte das pessoas que nos rodeia como um monte de crianças grandes.

Por fim, uma observação. O simples fato de que ninguém é obrigado a casar deveria bastar para apaziguar os que, revoltados, exigem que na esfera civil cada pessoa, a qualquer momento, faça o que lhe der na telha com relação à sua família, desde que arque com umas poucas conseqüências (pensões etc.). Repito: ninguém é obrigado a se comprometer com um cônjuge e um filho. É uma escolha (claro que não penso aqui, sei lá, em casamentos arranjados numa casa-grande em Pernambuco no séc. XVII, muito embora eu acredite que os “casamentos de interesse” também pudessem dar, como deram, em matrimônios tranqüilos**). É até uma questão de lógica: quem deseja casamento dissolúvel está predicando indevidamente um determinado ente abstrato, o matrimônio, pois “dissolubilidade” não é uma nota de tal ente. Quem fala em divórcio, por conseguinte, não está a falar de algo que tenha alguma relação com matrimônio. Trata-se de um outro tipo de relação, o qual pode até ter sua validade e proficuidade, mas que não se identifica de modo algum com a vida matrimonial. Esse, aliás, é o problema com o “casamento gay”: todo mundo se diz a favor ou contra, mas ninguém pergunta de que afinal se trata o dito cujo (não existe definição de casamento gay; com “relação estável entre pessoas do mesmo sexo reconhecida pelo Estado” não dá nem pra começar a discussão). Em suma: não chamem de matrimônio o que não é matrimônio.

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* Aproveito para lembrar que não é possível compreender o matrimônio sem contrapô-lo ao homossexualismo. O oposto ao matrimônio não é tanto a relação sexual descompromissada entre indivíduos quanto a relação especificamente homossexual. Grosso modo, homossexualidade institucionalizada (entendam: socialmente institucionalizada) representa uma absorção muito grande da vida dos indivíduos pelo sexo. É como se o erotismo se expandisse sobre tudo e, por isso, fosse perdendo seu elemento propriamente erótico. Os judeus “inventaram” a noção de homossexualidade, rejeitando-a, para que o sexo fosse exercido dentro de um quadro ordenado na vida do indivíduo. Leiam este artigo.

** Claro que matrimônios podem até gerar a infelicidade de ambos os cônjuges, mesmo eles tendo se casado após muita deliberação e na certeza de estarem fazendo algo bom para ambos. Mas o risco do erro não pode ser motivo bastante para pôr abaixo a dignidade da meta. Dizer que o risco mina a meta, nesse caso, seria algo como dizer que a idéia de sair à rua é intrinsecamente absurda só por existir maior risco de que, na rua, sejamos assaltados, assassinados etc.
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