terça-feira, 29 de maio de 2012

"Poder Global e Religião Universal", de Mons. Sanahuja

[Resenha publicada originalmente no Mídia Sem Máscara.]

A rigor, Poder Global e Religião Universal (Ecclesiae, 2012), do Monsenhor Juan Claudio Sanahuja, não traz informações novas nem secretas, mas traz informações fundamentais expostas de forma ordenada, o que lhes dá uma inteligibilidade que geralmente lhes falta, ainda as reputando a personagens e iniciativas bastante concretas – com o que dá nome aos bois. O leitor brasileiro que opina sobre política já não tem desculpas para ignorar ou dar de ombros diante do projeto totalitário de governo mundial que canta como sereia à elite do ocidente: isso, porque tanto A verdadeira história do Clube Bilderberg (Planeta, 2006), do jornalista espanhol Daniel Estulin, como Corporação (Cultrix, 2008), do scholar inglês Nicholas Hagger, estão publicados no Brasil – claro, são só uma ponta do iceberg, mas pelo menos são uma ponta que abre caminho em nosso mercado editorial. Caminho esse, enfim, que é o mesmo do livro de Mons. Sanahuja, que ainda acrescenta uma peculiaridade aos estudos da matéria: o enfoque da “espiritualidade” que há décadas vem sendo forjada e promovida como caixa de ressonância na qual, para o cidadão comum, fará sentido a destruição sistemática de tudo que de mais honrado temos.
 
Livros como False Dawn, de Lee Penn, interessam-se mais pela “doutrina” (Helena Blavatsky, Alice Bailey, Barbara Hubbard, Teilhard de Chardin etc.), se assim podemos chamá-la, e pelos grandes promotores da religião universal que se quer baixar como decreto. Já ao Mons. Sanahuja interessam os estratagemas com os quais se baixam o decreto: o desenvolvimento de novos “paradigmas éticos” e “paradigmas religiosos” em uma operação multilateral – e cujo controle foge até mesmo aos grandes engenheiros sociais – de imposição de definições sempre mutáveis de “direitos humanos”, “desenvolvimento sustentável” e outras belas palavras que o leitor bem conhece, e cuja fonte irradiadora próxima o autor localiza nas grandes conferências internacionais da década de 1990, inspiradas no Relatório Kissinger (1974). Mas vamos por partes.

Primeiro: em que consiste o projeto de uma nova religião universal? Consiste na tentativa de “dar uma resposta única e universal a todas as questões que possam ser propostas pelos seres humanos, em qualquer situação em que se encontrem e onde quer que estejam. Para tanto, é necessário, como é lógico, colonizar a inteligência e o espírito de todos e de cada um dos habitantes do planeta”, especificamente através de um “credo religioso”, de todo oposto ao cristianismo (“a ética judaico-cristã não poderá ser aplicada no futuro”, afirmou Hiroshi Nakajima, ex-diretor geral da OMS). O leitor mais precavido poderá fazer um muxoxo ao tentar se lembrar de quando viu, se viu, algum João Batista a pregar o novo Messias da ONU. De fato, são raros os sacerdotes de um novo culto paramentados em praça pública a anunciar seu credo. Mas existem muitos burocratas, ongueiros e professores simpáticos a distribuir, como se fez em setembro do ano passado, em Recife, 50 mil exemplares da Carta da Terra (documento oficial da ONU) em forma de cordel a crianças de escolas públicas. É um dos principais documentos da “espiritualidade ecologista” que põe homem e besta no mesmo nível, ao estilo de um panteísmo verde grosseiro à la Mikhail Gorbachev e sua Cruz Verde Internacional, cujos agentes defendem publicamente a substituição dos Dez Mandamentos pelo decálogo da Carta.

É tortuoso o percurso até a elaboração de um documento como esse. Em 1991, aponta Mons. Sanahuja, uma das agendas de trabalho da UNESCO dava conta da elaboração de uma “ética universal de vida sustentável”. De forma muito clara ali era posta a pedra fundamental do discurso ambiental alarmista que hoje conhecemos bem: “É necessário lembrar a verdade indiscutível de que os recursos disponíveis e o espaço da Terra são limitados” (UNESCO, Diez Problemas Prospectivos de Población, Documento de Trabajo, Caracas, Febrero 1991, pp. 6-9). 

Vale a pena aqui citar mais extensamente Poder Global e Religião Universal: 

“Nestes documentos de trabalho, a nova ética aparece quase como um paradigma messiânico: um ‘chamado a viver uma nova ética que terá que iluminar as interrelações complexas entre os fatores econômicos, o meio-ambiente e a população’. Seus preceitos, afirmam, deverão guiar a tomada de decisões dos governos, já que estas ‘não deverão ser consideradas como medidas sobre assuntos nacionais, mas sobre assuntos de interesse internacional’, pois, por exemplo, o alto crescimento demográfico de um país pobre cria necessariamente um fluxo migratório para países com melhor nível de desenvolvimento, os quais não têm capacidade de acolher novos imigrantes.” 

Apontava-se, no mesmo documento, a necessidade de frear o desenvolvimento industrial em países do terceiro mundo (“o progresso industrial dos países desenvolvidos não se estenderá aos Países do Terceiro Mundo”) com vistas a preservar o meio ambiente; mas, de modo incompreensível, chama atenção Mons. Sanahuja, “o documento acrescenta que a única causa de degradação ambiental nesses países é o fator demográfico, e que é intolerável que ‘os pobres, que serão a maioria no futuro, prejudiquem os ecossistemas do mundo para conseguir se desenvolver a qualquer preço’”. 

O que ali se plantava depois se colheria nos Princípios para viver de forma sustentável (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, 1991), em que se lê que “deve-se alcançar o equilíbrio entre a capacidade de carga da Terra, o volume da população e os estilos de vida de cada indivíduo”. Poucos poderiam, à época da apresentação desses princípios, imaginar que a massificação do aborto e do gayzismo seriam meios de salvar o planeta... É que não se pode perder de vista o que Mons. Sanahuja chama de “paradigma da reinterpretação dos direitos humanos”, assentado sobre a idéia de que os direitos humanos são “evolutivos”. Por exemplo, a Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW, 1979) reivindicara programas de “planejamento familiar”. Posteriormente o comitê de monitoramento dessa convenção “interpretaria” tal reivindicação como referência ao estímulo à esterilização, à contracepção e ao aborto, sem que nada disso constasse no texto original. Mais absurdo é o caso do comitê de monitoramento do Tratado Internacional contra a Tortura, que, por uma hermenêutica jurídica feérica, interpretaria o impedimento ao aborto como um ato de tortura contra a mulher.

Notem que isso não se limita a discussões chiques em salões da ONU: em 2009, o
Comitê contra a Tortura efetivamente aplicou tal interpretação ao julgar que a Nicarágua, ao proibir o aborto terapêutico, violava o tratado. 

Aliás, muitos desses documentos sequer necessitam ter vigência no direito internacional para que “painéis intergovernamentais” se ponham a trabalhar no que em curto prazo já será matéria universitária respeitável e, em seguida, política de governo. Um exemplo são os “Princípios de Yogyakarta”, que, embora não contem com o aval da “comunidade internacional”, vão pouco e pouco divulgando os “direitos humanos em perspectiva homossexual” através de estudos acadêmicos e cumplicidade de autarquias governamentais. Como se vê, atira-se de todos os lados, mas o alvo é um só: pois a destruição dos modelos correntes de sociabilidade (casamento gay, etc.) e a completa desvalorização da vida humana (aborto, etc.) são aríetes a abrir caminho para um novo projeto civilizacional, cujo esteio popular é o bom-mocismo da devoção ecológica à “Terra como Grande Mãe, Magna Mater, Inana e Pachamama”, como disse Leonardo Boff – sim: o homem é ainda hoje muito influente – na Assembléia Geral das Nações Unidas em 2009. 

Os capítulos 5 e 6 de Poder Global e Religião Universal, “A confusão dentro da Igreja” e “Notas para uma conduta cristã”, endereçam-se especialmente ao leitor católico, delineando estratégias de oposição ao presente estado de coisas. Curiosíssima é a resenha apresentada, no capítulo quinto, de um livro pouco conhecido, o romance Os três diálogos e o relato do Anticristo, escrito em 1900, do filósofo russo Vladimir Soloviev. Trata-se de uma distopia em que o diabo, no fim dos tempos, apresenta-se como “pacifista”, “ecologista” e “ecumenista”... O leitor há de julgar o que vai ou não de profético aí.

O livro do Mons. Sanahuja se encerra com dois apêndices: o artigo “Obama e Blair. O messianismo reinterpretado”, do filósofo belga Michel Schooyans (que inclusive viveu no Brasil), tratando do governo Obama no que diz respeito, por exemplo, a políticas abortistas; e a conferência “A Terra e seu Caráter Sagrado”, que a irmã canadense Donna Geernaert apresentou no Plenário da União Internacional de Superioras Gerais (UISG, Roma, 2007), e a qual ilustra bem o modo como pessoas de dentro da Igreja pervertem a verdade de Cristo e a põem a serviço da adoração da “Mãe Terra” do novo culto sem altar.

domingo, 27 de maio de 2012

O Paradoxo do Isolamento


 A história das minhas omissões, toda a minha história,
cabe nestas poucas palavras: um insensato horror à mistura!


Assim fala José Maria, narrador das Lições de Abismo de Gustavo Corção, ao descobrir mais um pedaço de si mesmo que antes lhe escapava. José Maria que, ao encontrar-se à beira da morte, se isola de tudo e todos com a intenção de descobrir quem é e a que veio a esse mundo, para ao fim se dar conta de que um de seus equívocos fundamentais foi ter passado toda a vida nessa outra espécie de isolamento a que ele chama de “horror à mistura”.

Corção leva seu protagonista a encarar o fato de que “a descoberta do eu se completa nos abismos da subjetividade”, inapelavelmente; e isso pressupõe, em certo sentido, que o sujeito se volte para si em detrimento do mundo. Mas é preciso notar o “em certo sentido”: a descida aos abismos da subjetividade em nenhum ponto coincide com o horror à mistura, que, dito de outro modo, consiste em horror ao próprio mundo, como se este contradissesse o Eu.

Doutor Aquiles, interlocutor dostoievskiano de José Maria no livro de Corção, explica: “Existe o genuíno, existe a verdade, mas é preciso ir buscá-la na mistura, é preciso aceitar por algum tempo a confusão do joio e do trigo.” (grifo meu) A passagem pelo mundo e pela mistura não é o fim do percurso, mas é condição necessária ao fomento da subjetividade do homem. A verdadeira (porquanto útil) introspecção só é possível após o sujeito já ter aprendido a lição de humildade que o mundo tem a nos ensinar: o amor pelo próximo como decorrência natural do amor por si mesmo.

É salutar, uma vez que faz parte do processo de autolapidação do ser humano, chegar ao momento em que se deseja desviar os olhos do mundo para cravá-los na própria consciência; é um isolamento para o bem, e em geral temporário. Ao passo em que aquele outro tipo de isolamento, o horror à mistura, não elabora um novo momento do ser, sendo mero reflexo defensivo de egos muito apegados a si mesmos (isto é, vaidosos).

José Maria foi um desses durante toda a vida, e confirma: “Essa é a minha triste dominante: uma exasperação do senso de ridículo”, senso esse que nos faz ter verdadeiro nojo daquilo que só nos parece alheio por nossa falta de autoconhecimento. O homem do horror à mistura é aquele que, sem se dar ao trabalho de procurar muito, decide já ter encontrado suas verdades e se senta sobre elas confortavelmente (às vezes, basta-lhe a verdade do seu amor-próprio acima de todas as coisas). Sobre isso, diz Doutor Aquiles: “O que envenena tudo é o contentamento mesquinho; é a vaidade.” No que emenda José Maria, compreendendo: “E quer que lhe diga aonde é, em que meio, em que grupo de homens é mais visível a vaidade? Eu lhe digo: é nos grupos de homens virtuosos, bem intencionados, bem comportados, que se unem para guardar a sã doutrina e os bons costumes.” E assim Corção desce a lenha naqueles que deveriam ser seus companheiros de luta, estivessem eles interessados em algo além de seus próprios umbigos: “Ah! e as assinaturas dos jornais católicos com fotografias de ilustres prelados; e as conferências paroquiais, em que se convencem os superconvencidos, em que se explica o horror do comunismo aos super-horrorizados, ou se apontam os inconvenientes do divórcio ao superindissolúveis casais!”

Doutor Aquiles reitera, e eu posso vê-lo acentuar cada sílaba, como se sublinhasse a obviedade suplicante da frase: “O mundo é um lugar de mistura.” Mesmo os que crêem sinceramente na dureza dos pilares em que se apóiam, se se fecham para o mundo, recusam (é o caso específico dos supercatólicos) os próprios pilares. Há algo de errado com o cristianismo da mansidão, como há algo de errado com as crenças inabaláveis. Se o cristianismo nos oferece qualquer coisa de inabalável, certamente não é uma simples crença, mas algo mais fundo, mais essencial, algo que se vai instalar no que somos e lá permanece subjacente à acidentalidade das coisas plausíveis que pode até ser que existam. O cristianismo é uma força ativa que nos revolve as entranhas; uma vez que se entre em contato real com sua mensagem, não creio possível posteriormente um retrocesso total, tampouco a indiferença, menos ainda a apaziguada mansidão. Aquele que declara ter suas entranhas acalmadas porque conheceu Deus, ou mente sobre a suposta calma ou não conheceu Deus.

Quando Corção põe na boca de seu protagonista as palavras: “Também eu tenho vivido um prolongado solilóquio”, a frase pode se referir tanto ao isolamento voluntário a que se submete o personagem durante seus últimos meses de vida, quanto à totalidade da vida deste personagem, o qual agora reconhece em sua passagem pelo mundo o erro dos que se crêem autossuficientes. Ao contrário do que se pode pensar, nem o ermitão que se isola no deserto em busca de si mesmo e de Deus nega o mundo; se ele busca a solidão e o silêncio é porque já compreendeu plenamente o atributo coletivo da existência de todo e qualquer homem, e ainda poderá voltar ao mundo com as suas lições de deserto.

É preciso que uma pessoa determine os limites de seu próprio ser sem negar o mundo. Isolar-se em si mesmo, sem se isolar do mundo. Eis o paradoxo.

terça-feira, 15 de maio de 2012

Elogio do Silêncio


Os meus bens já não estavam fora, nem eram procurados sob este sol pelos olhos da carne. Aqueles que querem gozar fora de si mesmos facilmente dissipam-se e derramam-se naquelas coisas aparentes e temporais, lambendo com o pensamento faminto as imagens de tais objetos. Oh! se eles se debilitassem com a fome e dissessem: “Quem nos mostrará o Bem?”

Santo Agostinho, Confissões


Um dos mais famosos aforismos de William Blake é aquele que diz: The road of excess leads to the palace of wisdom. Contemporâneo da Revolução Francesa e seu irmão ideológico, Blake mantém com o espírito do nosso século vinte-e-um a mais natural afinidade: para ambos o homem é um poço sem fundo que, tendo em seu centro uma ausência, tão menos infeliz será quanto mais tomar do fluxo mundano para dentro de sua goela imensurável; é, afinal de contas, um ser que não tem nada a perder, aquele a quem o acaso jogou no palco da vida e, sem finalidade ou vigilantes, só tem contas a prestar com seu aparelho sensório.

Deixando de lado a questão da filiação ambígua ou cambiante do poeta William Blake a essas ideias, assinalemos simplesmente que em tempos atuais essa é a interpretação que mais apelo tem junto ao populacho (o qual muitas vezes coincide com nossa “classe letrada”). Vivemos em tempos de idolatria do excesso enquanto signo de vida em movimento, tempos em que a vida interior ou contemplativa é suplantada pelo mergulho passivo no mundo dos sentidos.

Isto é válido sobretudo para a cultura das grandes cidades. E aqui entramos no tema deste texto propriamente dito: as grandes cidades, em geral; a cidade de São Paulo, especificamente. Falo de São Paulo porque é a única megalópole que conheço de perto, mas é bastante provável que muito do que se verifica a seu respeito valha também para os outros grandes centros urbanos do mundo, pelo menos quanto aos tipos sociais gerados por eles ou, dizendo de outro modo, ao efeito que a cultura da megalópole tem sobre o humano.

São Paulo é uma cidade totalmente voltada às exterioridades. É um lugar cuja cultura se resume a uma palavra: dispersão. Inclusive o fascínio que ela exerce sobre tantas pessoas, residentes ou visitantes, é comumente expresso por alguma variante da ideia de que São Paulo é um lugar de “tudo ao mesmo tempo”; aqui todas as culturas se encontram, todas as raças e classes sociais convivem, pode-se almoçar por 250 ou 2,50 reais. “São Paulo é a metrópole das oportunidades”, dizem. Já eu digo que São Paulo é o palácio do excesso, onde mais facilmente do que em qualquer outro lugar murcham as sementes da sabedoria.

É preciso, de fato, muita fortaleza interior para não se deixar corromper por essa cidade. Ela tem incontáveis facetas, por isso vou falar apenas daquela que conheço melhor, porque julgo que por trás de todas as suas máscaras existe o mesmo rosto ressequido. Eu convivo, desde que moro aqui, há seis anos e alguns meses, com uma das dimensões de que São Paulo mais se orgulha das tantas que tem: a de metrópole cultural. E afirmo que não preciso mais conhecer lugar nenhum para saber que encontrei aqui o arquétipo do culturette inculto – aquele que, vomitando por onde passa seus conhecimentos em alta cultura, se lhe trancarem num quarto vazio com uma obra de arte, será incapaz de encontrá-la (e, por outro lado, se adentrar um chiqueiro com a informação de que ali se encontram as últimas tendências em arte contemporânea, medirá os porcos, beberá a lama e tomará notas sobre a experiência). É como se o excesso de informação – o excesso de formas tão pretensiosas quanto esvaziadas de arte – esterilizasse a sensibilidade daqueles que vão pouco a pouco aprendendo a ignorar qualquer possível relação entre (parafraseando o poeta) a vida apenas, sem abstração, e o conteúdo de obras artísticas, chegando ao ponto de estas nem precisarem mais ter um conteúdo intelectualmente apreensível, bastando excitarem os sentidos. Esse tipo de expressão artística irracional é como uma extensão lógica das estruturas da cidade de São Paulo, a qual tem em sua anti-arquitetura o símbolo perfeito de sua cultura (disforme, assimétrica, sem comunicação entre suas múltiplas partes, egocêntrica). E no olho desse furacão está o tipo humano que incorpora aquele paradoxo, que consiste em as pessoas mais esterilizadas ou incultas serem justamente as que mais buscam (ou ao menos aparentam) se cultivar.

Para entender melhor esse interessante fenômeno psicológico, falemos de sua versão ampliada e massificada, o evento em que o mencionado paradoxo ganha corpo em uma terrível multidão expressando em uníssono a relação problemática de São Paulo com o objeto “cultura”. Refiro-me ao evento Virada Cultural.

Aquilo que teoricamente se define como “eventos culturais acontecendo durante 24h por toda a cidade de São Paulo” tem pelo menos duas dimensões, ambas lamentáveis. A primeira e mais evidente para quem, curioso e desavisado, resolve ir ver do que se trata é a que chamarei de dispersiva: sob o pano de fundo dos “eventos culturais”, a multidão se embriaga, se droga e se dissipa moralmente ao longo de 24h durante as quais tudo é permitido. Eu já estive lá, leitor, acredite: as ruas da cidade, especialmente as do Centro, viram verdadeiras terras de ninguém. Confesso que, circulando pelo meio da Virada Cultural, cheguei inclusive a experimentar certo prazer, de fundo meio antropológico, meio estético; era como estar diante da materialização de um grotesco antes só acessível através de livros e filmes. Os brasileiros, que não temos guerras nem catástrofes naturais em nossa memória coletiva, carecemos de certo tipo de experiência do trágico capaz de nos mostrar a nós mesmos cruamente. A Virada Cultural de certo modo oferece isso: quem se propuser enfrentá-la terá diante de si um quadro horrendo, dantesco, que deve ser visto na mesma medida em que é preciso um homem examinar sua própria consciência de tempos em tempos e encarar a sujeira presente ali.

Por outro lado, há uma segunda dimensão concomitante à da mera dispersão sensorial e que difere desta não tanto por seus objetivos finais, mas sobretudo pelos meios que utiliza;  trata-se de mera continuação adensada daquilo que constitui a relação normal do paulistano com arte e cultura: pessoas correndo de um lado para o outro, enfrentando filas intermináveis, se acotovelando e competindo para ver quem atende a mais eventos. São uma variação da figura do turista que, visitando ruínas do Velho Mundo, passa pelos marcos históricos segundo o critério de já haver ou não tirado fotografias ali; uma vez que as tirou, corre para entrar na fila do próximo local/monumento e assim por diante. Aqueles paulistanos que não consideram a Virada Cultural como mero pretexto para as mais diversas modalidades de dissipação sensória, isto é, que colocam os eventos culturais em primeiro plano, já não praticam a dispersão por se imiscuírem sexualmente com o primeiro bêbado ao lado ou encherem de química seu cérebro a ponto de já não sentirem coisa alguma (não seria isso, no fim, o que buscavam?); eles anestesiam, sim, seus sentidos, mas buscam fazê-lo já não com álcool e drogas e sim por meio da famigerada arte.

O que acontece aqui é o mesmo que faz pessoas lerem bombas morais como Dostoiévski e saírem intactas. A obra de arte bate na consciência da pessoa sem conseguir penetrá-la, limitando-se a causar certa excitação sem forma definida. Por um lado há aí a simples incapacidade de entender a boa arte, complexa por necessidade de sua essência, mas não é só isso; não se trata apenas de um problema intelectual, de carência em educação escolar; há no fundo disso um problema moral, de caráter – quando um ser humano desconhece a si e a sua situação no mundo ao ponto de nem saber que perguntas fazer, é natural que, se um artista lhe oferece respostas cifradas simbolicamente, esteja o homem confuso desde a base inapto a acompanhá-lo. Não tem jeito. Então as pessoas ficam patinando sobre a superfície de obras de arte, sem qualquer critério ou com critérios risíveis de apreciação, até que já não se diferenciam as boas obras daquelas produzidas pela pressa e ignorância da cultura pop-urbana. É tentativa de expressão artística, tá valendo – essa é a ideia da Virada Cultural paulistana e o que faz a cabeça de seus frequentadores mais cultos, que julgam pensar sobre o assunto.

Eu, indivíduo, Lorena Miranda, não sou melhor que ninguém, mas já não posso lutar contra os fatos; se tenho qualquer respeito por minha faculdade racional, afirmarei que o certo é o certo, o errado é o errado, tal objeto é arte e tal outro não é, quando essas verdades se me impuserem. Eu já estive lá. Como diria Sylvia Plath, I know the bottom. E está tudo errado. Eles se movimentam em círculos viciosos e tudo se estrutura diabolicamente para gerar sofrimento, para aniquilar a noção de pessoa, para minar toda e qualquer autoestima. Essa máquina mortífera opera a todo vapor em São Paulo com sua cultura da dispersão. As pessoas são jogadas na noite dessa cidade e amanhecem só o pó. Muitas, acostumadas a ser pó, nem se dão conta de que existem outras alternativas e pensam: viver é assim mesmo, é ter a vista turva contínua e nauseantemente e de vez em quando receber um baque do chão.

Eu já andei demais por São Paulo olhando a cidade pela janela do ônibus, ouvindo música e vendo tudo passar; já me encantei e ainda me encanto com seus meandros de concreto, seus grafites, seus mendigos pitorescos, seus pombos como sentinelas egípcios, seus jovens fantasiados de mendigos pitorescos de luxo, o luxo de nunca ver uma face repetida na multidão. Mas tudo isso só alimenta temporariamente, como assistir a um filme; tudo isso não passa de exterioridade, de luzinhas piscando para preencher nosso campo de visão. É barulho e mais barulho e sentido nenhum.

Pela minha experiência pessoal, São Paulo resulta nisso: cansaço, distância, confusão mental. Morar nessa cidade é como se debater dentro de uma armadilha: você sai de manhã bem disposto e ao fim do dia ela lhe terá sugado todas as forças. A lenda da convivência harmônica de classes, aliás, é outra de suas mentiras. Os bairros aqui são pequenas vilas onde, para se ser estrangeiro, basta vir de uma linha diferente do metrô. Nada é mais fácil para São Paulo do que separar seus ricos de seus pobres, seus paulistanos de seus nordestinos. Nada é mais fácil para São Paulo do que dificultar o contato entre as pessoas, e tanto, que seus habitantes acostumados a tal lógica da distância logo desenvolvem esse mesmo traço em sua psicologia.

Não existe amor em SP? Mas não há lugar sobre a Terra privado de amor. Há, sim, lugares onde estabelecer e expressar laços afetivos é mais difícil, onde ter vida interior e silêncio para contemplar a realidade do espírito é mais difícil. São Paulo é um desses lugares. São Paulo é um desses lugares onde vive muito bem quem só precisa de uma desculpa para se esquivar da própria consciência.

domingo, 13 de maio de 2012

Carta aos brasileiros

Por Day Teixeira
“Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um monte; nem se deve acender uma candeia e colocá-la debaixo do alqueire, mas no velador, e assim iluminar a todos que estão na casa” (Sermão da Montanha)
Feto segurando o dedo do médico que o operaNuma época de homens enfraquecidos e covardes, que esperança restará se nem nós, mulheres, sairmos em defesa de nossos filhos?

Está impressa na memória de todos a imagem de soldados marchando para guerras, carregando bandeiras, embarcando em navios e deixando para trás mulheres e filhos chorosos. Ainda que o povo brasileiro não tenha passado por nenhuma guerra recente, a imagem do pai arriscando a própria vida para defender e salvar sua mulher e filhos é mais que simbólica – parece fazer parte da ordem natural das coisas. Porém, em tempos de hoje, a ordem natural parece ter saído de moda.

Assistimos todos com pacífica indiferença ao Superior Tribunal Federal aprovar com folga a legalização do aborto em caso de anencefalia. Deixando de lado a discussão absurda sobre se o feto sem cérebro é ou não um ser humano (seguindo o conselho do Filósofo: discutamos sobre tudo, mas não sobre se o céu é azul) vou ao que importa: as conseqüências quase inevitáveis dessa decisão.

O fato de não ter havido nenhuma manifestação mais expressiva do que frases em twitters e facebooks mostra que, sim, a população brasileira já está amaciada quando o assunto é liberação do aborto. Está se tornando feio ser contra a legalização, remexer nesse assunto que já não é tabu em países desenvolvidos - como anuncia a mídia com um suspiro de satisfação. Ninguém quer dar a cara a tapa para defender crianças anencéfalas que viverão dias insuficientes para agradecer pelo esforço. O problema é que as coisas não irão parar por aí.

Basta ter um pingo de noção sócio-política (e confesso não ter mais que um pingo) para notar o rumo que as coisas vão tomando. A proposta de legalização do aborto em casos de anencefalia foi feita pela CNTS em 2004, mas só agora a votação foi realizada – por quê?

Depois de eleições em que o tema foi parar na berlinda e a população recebeu como promessa de campanha que o aborto não seria legalizado no Brasil, vimos, faz poucos meses, surgir um novo nome para a tal “Secretaria de Políticas para Mulheres”: Eleonora Menicucci. A nova ministra, além de ter sido “colega de cadeia da presidenta”, é como que PhD em políticas e técnicas abortivas. A feminista que foi colocada para assegurar o bem-estar das mulheres brasileiras assegurou-se de passar a vida toda se dedicando à legalização e prática do aborto – em toda e qualquer circunstância. Ora, objetará o bom senso, mas foi legalização do aborto de anencéfalos e não do aborto “aborto mesmo”. Ah, é?

Lembro-me de quando das eleições um rapaz foi parar na cadeia por distribuir panfletos anti-abortistas, e teve aquela manifestação na Sé, e discursos inflamados na internet de pastores e padres e até o Papa se manifestou... E então eu pensei: Ufa, seguraremos essa peteca por bons anos ainda; afinal, não será fácil aprovar na cara dura uma medida que é abominada por quase noventa por cento da população. Como eu fui ingênua. Boba de pensar que esses mestres da manipulação social tentariam fazer as coisas assim, como fazemos todos. Não, eles são muito mais espertos.

Quem seria firme o suficiente em sua convicção anti-abortista para recusar à mulher, grávida de um filho com os dias contados, o direito de antecipar o inevitável e evitar todos os possíveis traumas provenientes da extensão desse sofrimento? Quem seria contra o aborto de anencéfalos num país que já se acostumou com a ideia do aborto-por-estupro? Para além do absurdo de condenar à pena capital um filho inocente pelo crime de seu pai, o aborto-por-estupro abre como prerrogativa a preservação da “saúde psicológica da mãe”, que nesse caso (e agora no de anencefalia) vale mais que a vida do filho. Muito poucos, na verdade, se alarmariam com mais essa concessão, e muitos aceitariam a medida, é verdade que meio a contragosto, tentando com isso aliviar aquele peso na consciência de não poder ser assim tão radical. E é exatamente aí que a malícia faz a festa.

Quando o STJ aprovou (sabe-se lá como, considerando que eles são o judiciário) o aborto de anencéfalos alegando a defesa da saúde mental da gestante, abriu-se a porteira para todo tipo de absurdo jurídico. Será questão de tempo até que várias doenças congênitas, malformações e síndromes dos mais diversos tipos entrem no balaio. O argumento geral só precisará de uma retorcida aqui e ali para valer para inúmeros casos (o bebê cego, o bebê aleijado, o bebê autista, o bebê com pé torto) todos eles causarão futuros traumas psicológicos e deverão ser, com todo o suporte do Estado de direito, picados e sugados para fora dos úteros de suas mães – que, coitadas, graças a isso poderão seguir curtindo sua vida sem dor.

A aprovação do aborto por motivo de deficiência do feto cria um nó moral: a quem é permitido julgar a validade de uma vida? Ao Estado? Às mulheres? Agora que se pode matar um filho “porque já ia morrer mesmo”, quanto tempo restará até que se possa matá-lo “porque o mundo é cruel”, “porque ele seria pobre”, “porque não quero minha barriga flácida”, “porque tenho a minha liberdade”? Ora, existe um grande perigo em se colocar valores acima da vida – principalmente quando se trata da vida dos outros (sim, porque os fetos são outros). E ao ceder ao aborto por anencefalia, os brasileiros estão por tabela aceitando a descriminalização do “aborto mesmo”. Sim, assim desse jeito, sem nem perceber. Estão aceitando um inevitável futuro sangrento para nossas crianças só porque não querem ser assim tão radicais. Percebam: é questão de tempo.

Que homens crescidos e magistrados façam isso contra seus pequenos compatriotas já é alarmante, mas que mulheres (mulheres!) aceitem isso como um direito e ainda se sintam lisonjeadas por saberem que agora os filhos de sua nação poderão ser mortos, para mim, é absolutamente inexplicável. Homens e mulheres favoráveis ao aborto para mim são simplesmente loucos. E por isso aqui não falo com eles, mas com aqueles que tendo a cabeça no lugar não têm, no entanto, força suficiente para falar mil vezes contra o aborto em toda e qualquer circunstância. Tomemos cuidado, pois estamos lidando com cobras astuciosíssimas que se valerão de todos os recursos para atingirem seus objetivos.

Por isso cabe a nós – seres humanos já nascidos e crescidos, tão orgulhosos de nossa iluminada razão – usarmos de nossa condição para garantirmos a esses indefesos pequeninos o direito – dado a eles pela própria natureza – de chegarem um dia a ver a luz desse mundo.

sábado, 5 de maio de 2012

Um test drive intelectual


O vídeo abaixo é um documentário que tenta estabelecer uma teoria sobre o todo, usando como base teorias recentes da neurociência, relatividade geral, mecânica quântica e muitas outras. O tom do documentário não é nada parecido com coisas como "O Segredo" ou "Zeitgeist", apesar da estética e do título às vezes lembrar esse tipo de documentário que não tem nada de sério.

Ele fica um pouco menos sério porque o criador da "Teoria do Todo" é conhecido como Athene, que é autointitulado o maior jogador de jogos online de todos os tempos; e pelo que pesquisei na internet, seus recordes são realmente dignos do título. Além disso, ele não tem formação em nenhum dos campos que ele aborda e é extremamente novo. Em geral isso costuma diminuir a credibilidade, mas é bem possível que alguém aprenda e consiga criar uma teoria revolucionária sem precisar entrar na Academia; não criei nenhuma teoria revolucionária na economia e política, mas entendo relativamente bem do assunto sem ter aprendido isso no meio acadêmico. No mínimo o sujeito merece o crédito pela criatividade.

Falando mais diretamente sobre os temas tratados, na parte que está legendada no momento - que é a parte completa que fala sobre neurociência - são abordadas ideias de porque em alguns momentos as pessoas não conseguem absorver alguma ideia e em outros consegue com muita facilidade, o que muda no mundo desde o descobrimento dos neurônios espelho, pensamentos sobre sistema de crenças, o que nós somos, uma nova fundação da moralidade e até porque matar outra pessoa pode ser matar uma parte de nós mesmos. Enfim, existem coisas comprovadas no meio do documentário, mas muito do que é apresentado é a teoria original do Athene; então críticas e pensamentos sobre serão essenciais nos comentários, principalmente porque não existe nenhum artigo comentando ou refutando o documentário na internet.


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